Quando morávamos em Jaguaruana, interior do interior do interior do Ceará, meu pai tinha a delicadeza de guardar os pequenos ovos, encontrados no chão do quintal poeirento da nossa casa, no bolso do paletó. Pendurava no guarda-roupa aquela inquietante latência.
Conferia o status da gestação diariamente, examinando os ovos como ultrassonografias na contraluz. Quando a casca começava a rachar, levava-os de volta ao quintal. E, acocorados em volta deles, esperávamos.
Eram cobras que, invariavelmente, eclodiam dos pequenos ovos. Mas meu pai, juiz consciencioso, não queria correr o risco de matar passarinhos inocentes.
Aos filhotes de cobra executava objetiva e eficientemente, como os que apenas cumprem sentenças, dispensados de fazer juízos de valor. As cobras já nasciam biblicamente culpadas.
Um dia, a pequena cidade acordou em polvorosa. Mataram! Mataram a D. Lalinha! No dia do júri, o marido, réu confesso, explicou que a esfaqueou repetidas vezes, nos olhos e na garganta, para que ela aprendesse a não ficar por aí, dando desfrutes com forasteiros.
No processo, ficou comprovado que o forasteiro havia batido respeitosamente à porta de D. Lalinha, cumprindo os costumeiros "ô de casa", para pedir um copo d'água e assuntar quando acaso saía o próximo ônibus daquele cidade-beco, sem-saída.
O marido chegou do trabalho e viu o tal forasteiro se afastando de sua casa, a mulher debruçada à janela, acenando com um sorriso.
Condenado por homicídio qualificado, o marido não demonstrava remorso. O que é que queriam que ele pensasse?
Aprovar, não aprovavam. Mas, estranhamente, parece que o compreendiam. Ali, as mulheres, assim como as cobras, também nasciam biblicamente culpadas.
Destino de mulher, a palavra cobra, também é feminina, e arrasta em seu significado a dívida.
ResponderExcluiroutro dia senti uma pena quase cristã, mas depois lembrei que sou ateu...
ResponderExcluirNesse mundo cão, nós mulheres já nascemos condenadas por possuirmos racha meio ao corpo, qual o propósito disso? Quem concedeu aos possuidores do falo o cargo de julgadores?
ResponderExcluirSubjulgadas! Resignação?! Nem fudendo!
A omissão rende as melhores fotos, como a do belo conto. Brademos!
em tempo, corrigindo:
ResponderExcluirsubjugadas: sem L, plis.
Ótimo conto!
ResponderExcluirA conclusão é perfeita, embora essa seja uma triste constatação. Nascemos condenadas, mas podemos mudar o texto da nossa própria história. Mesmo sabendo que algumas mudanças sugerem dores maiores e riscos incalculáveis. Mas a vida é um risco; um risco necessário ao espírito, por isso mesmo quem não arrisca, não vive plenamente.
Beijos
Minha amiga-irmã, se não for essa dívida sem fundo da humanidade que nos leva a todos de arrasto...
ResponderExcluirNina, e eu já estava viajando no neologismo. Achei que era sub-julgada, pelo fato de os julgadores, isto é, os portadores do falo, não estarem à altura de nos julgar rs rs rs...Ai esse vício de interpretar toda palavra :-) rs rs rs
Érica, sabe que eu adoro que a mulher seja "responsabilizada" por querer experimentar da árvore do conhecimento? Pensa só: é mesmo a nossa cara! Adão achando tudo ótimo, Eva vai lá e provoca a primeira D.R. da Criação, uma D.R., diga-se de passagem, com o próprio Criador! É uma excelente metáfora, na verdade. A história em si não é o problema. O problema é a interpretação oficial ;-)
Papagaio, pena cristã é ótimo! Já não bastava a culpa? ;-)
Biblicamente culpados, Roberta, nascemos todos nós: devemos seguir os mandamentos e, portanto, se formos bonzinhos na Terra, vamos morar no céu. Beijos
ResponderExcluirO comentário lá foi melhor que o texto. Aqui, nem se diga. Emocionante, inteligente e oportuno.
ResponderExcluirRoberta,
ResponderExcluirUma prosa impregnada do talento de contar. Um conto verdadeiramente interessante.
Roberta, muito bonito o texto, me deixou pensando em tanta coisa! Beijo grande, Tati
ResponderExcluirÉ deliciosamente irônico ler "as mulheres, assim como as cobras", se se pensar a que elas são tão sempre aludidas, pelo seu desenho fálico...
ResponderExcluirBelo, belo texto!
Beijos
Sempre que penso nas serpentes me divido entre o medo e o respeito. Por ignorância? Não. Por temer reconhecer nelas algum parentesco. Refiro-me a estes seres que se arrastam em realidades inseparáveis e no momento em que isso acontece acabamos por entrar em freqüência vibratória com a mente delas, no geral, tomadas por perversas. Níveis profundos de comunicação podem estabelecer-se com este animal, sobretudo quando nos permitimos entrar em seu reino e compreendê-los a partir deles mesmos. Tive uma infância miserável. Não raras vezes, eu e meu irmão éramos colocados debaixo de árvores, sob o halo espectral da natureza, e naquela passarela aberta para o sobrenatural, até mesmo as cobras sabiam distinguir o bem do mal. Ainda recordo aquela tarde em que eu brincava com uma, se a memória não me trái, pelo colorido, arrisco uma coral. Acredite ou não, ficamos frente à frente, e não senti nela qualquer desejo de me ferir. Ao contrário, ela me fazia rir. Por incrível que pareça eu a via como uma janela concedida por Deus para que eu pudesse ter uma dimensão transpessoal do que deveria ser superado, controlado ou re-expressado. Com elas aprendi a formidável receita da transformação. A capacidade de mudar de pele, de nome, de cidade, até ser outra. Lamento profundamente que seu lado positivo tenha sido esquecido, porque se levarmos em conta o seu aspecto simbólico e ancestral entraríamos em órbita com a sua energia psíquica, talvez por temer que elas se alinhem também com as nossas vidas. Quisesse ter eu o antídoto para curar-nos destas ideologias. Tivesse eu a chave daquela passagem secreta eu lhe daria, para que você, na qualidade de poetisa, pudesse encontrar um modo de entender melhor as circunstâncias dessa força específica, e tirar até das serpentes essa simbologia negativa. Roberta, já parou para pensar porque a cobra é usada como símbolo da medicina?
ResponderExcluirMordi a língua. Tinha gosto de veneno, rs.
Há divindade até na culpa. Você sabe que eu te entendo. - completei.
ResponderExcluirRoberta, gostei do seu texto. A cobra é símbolo de sabedoria e está muito ligada à mulher. Escrevi outro dia sobre o mito de Psiquê e Eros e refleti exatamente sobre a obscuridade em que ele viveria, não fosse a curiosidade da moça. Da mesma forma Eva e Lilith, se não subvertessem a ordem estaríamos na escuridão, na ignorância. Adorei poder saborear o fruto da árvore do conhecimento. A cobra nos salvou. Gostei do seu blog. Beijos!
ResponderExcluirA Nina não precisava ter se corrigido, Roberta. "Subjulgada", no caso, cai melhor que subjugada.
ResponderExcluirMuito bom o texto. E seu pai, uma figuraça!
Beijos
Pipa, querida, ajoelhei-me sobre suas palavras-grãos em penitência, como no dia em que minha mãe gritou comigo porque peguei o cordão espesso e rebrilhoso no quintal e pus em volta do pescoço. Entrei em casa vaidosa de meu adorno, meu tesouro de prata. Desfilei com afetação nobliárquica ante minhas irmãs e minha mãe boquiabertas. Tinha ao colo uma cobra-cega ou cobra-de-duas-cabeças. Mas mãe, eu dizia, esbulhada de minha jóia entre gritos, era macia, entende?, macia!
ResponderExcluire, às vezes, é preciso ser cobra.
ResponderExcluiradorei o texto.
beijo.
Deve ser por isso que olho para a biblia com maus olhos. hehehehehe. Mas enfim, é o tal livro sagrado que ensina a julgar e condenar. Amém.
ResponderExcluirEu gosto de cobras, o ser rastejante e não o adjetivo. E seu texto me trouxe uma pequena saudade das coisas que o nono fazia como coçar a cabeça dos cavalos por achá-los carente e o cavalo respondia a forma dele. traçavam diálogos demorados e depois se despediam... rs
bacio
Ah, como eu adoooro seu trabalho aqui no blog.
ResponderExcluirVim por meio desses selinhos, lhe parabenizar por ser tão dedicada e fazer esse trabalho lindo.
Um superbeijo.
Fran
http://nao-digo-que-espero.blogspot.com/p/selos.html
Minha nossa, Betinha- como dizia o velho Chico Anysio, eu queria ter um filho assim. E você, para nosso orgulho, é nossa filha. Ao começar a ler o texto das cobrinhas ainda no seus ovinhos. Como eu me lembro daqueles ovinhos branquinhos e moles que na minha infância eu espremia e aparecia uma cobrinha com a cabeça desproporcionalmente grande; eu tinha pena porque me lembro que me comparava a elas por ser pequena ainda, mas na cultura em que fomos criados, pensava que seria uma jararaca a menos para nos morder mais tarde o que corrobora o tema do seu conto: as cobrinhas, coitadas, já nasciam com o viés da culpabilidade. Claro que, antes de terminar, chamei seu pai que leu comigo, ambos "proud" da nossa Betoneira, Beldenis, Betunta etc. E seu pai: dá para imprimir que eu quero mostrar a mamãe. Precisamos de um suporte na informática. Manda para o casal de Macabeus rsrs de uma forma que imprimamos e levemos aos quatro cantos do planeta, pois como dizia o seu filósofo avõ Afonso: Pai e mãe é bicho besta...
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