Porque uma paixão extemporânea, se declarada,
faz nascer dois sitiados em lados avessos de um mesmo muro.
faz nascer dois sitiados em lados avessos de um mesmo muro.
Era um portão de abertura a exigir força descomunal e dolorosa. Alto. Austero. De bronze maciço. Pesado, portanto, como uma tristeza maciça. Que também é uma proibição de passagem.
As duas folhas perfeitamente complementares, jungidas numa aliança de ferrolhos. Bem no centro, pendia da boca ameaçadora de uma cabeça de leão a alça convidativa da aldrava.
Por muito que percorresse a amplitude do jardim que o circundava a quase perder de vista, ele chegava sempre àquela inevitável demarcação de um limite.
Para além era o interdito. O haver muro não o intrigava tanto como o haver portão. Porque o muro era o imponderável, em sua irrecusável natureza de realidade posta. Mas o portão era caminho ainda. Bastava, para isso, mover-se-lhe as dobradiças, divorciar as folhas perfeitamente complementares, instaurar a fresta por onde escapulir-se o corpo para dentro de um novo todo, aparentemente ilimitado, a que ouvira chamarem casa - a palavra misteriosa.
Jamais soubera como era estar dentro. Habitava as extensões do afora, herdadas ao pai, que eram da casa a imediata vizinhança.
Não havia registros precisos de quem exatamente ordenara que primeiro se levantasse o muro, aonde mais tarde se veio a afixar o portão. Certo é apenas que muro e portão o precediam, como a profecia cíclica do impasse. Talvez os de casa temessem o dissoluto, tanto quanto os de fora temiam a clausura instável do teto para o céu que era seu. Não haver teto era jamais sofrer o risco de ruir. E, no entanto, a aldrava era a despropositada possibilidade de chamado entre os mundos-medos inconciliáveis.
Muitas vezes ele fizera soar os golpes da aldrava, tremendo de antecipação e espera. Não sabia se lhe assustava mais a hipótese de se lhe abrirem os portões de par a par, a possibilidade de devassar a casa pelo meio; ou a de sequer registrar a aproximação ansiosa daquela que, junto ao portão, do outro lado, respirava. Coisa viva, matéria igual à sua. Saber dela, habitava-o, ao mesmo tempo que o tornava irremediavelmente sozinho. Soube-se pobre do que não tinha. O que lhe era familiar, agora desamparava-o. A amplitude se tornara apenas a métrica desoladora do vazio.
De fato, nada lhe parecia mais seu do que o que estava guardado do outro lado. Guardado dele, portanto. Não haveria trespasse que não constituísse, forçosamente, uma transgressão.
Por isso parecia-lhe que devia de novo correr na direção oposta ao portão e seu intransponível deboche de caminho feito para não se passar, apequená-lo pela distância, expulsá-lo dos olhos, à medida em que voltasse a se embrenhar em seu paraíso de exterioridades e jardins. E com isso adiaria, uma vez mais, o reencontro da casa, em suas coordenadas imutáveis: naquela longitude exata em que se desencontravam os tempos.
Estava pensando há um bom tempo se tais interditos seriam a graça ou a desgraça da vida. Inda mais pensando que sempre haverá um portão após outro. O penúltimo dá para o coração e o último, talvez último, para a alma. Estes dois não sei se me trancaram num mundo eternamente noturno ou se trancam a luz que deveria ter além (dentro).
ResponderExcluirFato é que os olhos já cansaram de não ver e os dedos sangraram naquela aldrava.
Adjetivos são escassos para definir seus textos, Roberta. Talvez em norueguês. Combinaria. Mas citarei apenas um êxtase contemplativo destas palavras que fogem para não nos ferir os olhos, como deveriam fazer os raios de sol e a brancura polar.
bjos
..."Não haveria trespasse que não constituísse, forçosamente, uma transgressão."
ResponderExcluirAssim o é...
Pena que o portão só impeça o trespasse do corpo físico... Alma há muito já ultrapassou...
E chamas, garras e dentes igualmente passam com assustadora facilidade...
Agradeci a providência divina por não haver testemunhas que pudessem presenciar o assombro que senti no exato instante em que o calendário de sua timeline se moveu. Hesitei um momento e ergui os olhos na direção do título, que parecia ter a consistência de concreto armado. Chamei por Charlote Clotilde. A aranha cinza que usucapiu o canto superior direito de minha escrivanhia e, sem nenhum contrato, apresentou-se como minha nova inquilina. Consenti já que ela não pedia em troca mais do que minha compreensão, e, se isso fosse possível, minha companhia. Encontrei nos olhos castanhos de Charlote uma sombra de melancolia muito parecida com a minha e, talvez por essa razão acabamos por nos tornar grandes amigas. Tinha que ver estes arabescos de teias que ela faz todos os dias. Já dei até nome as telas. Uma, chamei de Jane Austen. Persuasiva, sabe? Charlote franziu o cenho com semblante pessimista e pensei se aquilo não seria um estratagema de propaganda para logo em seguida, tomar nota de uma reflexão mais profunda. Lemos uma vez. Depois mais uma. Depois mais outra. E, por fim, olhamos uma para a outra deixando escapar de nosso semblante uma nuvem escura e pesada de interrogação. Como transpor o intransponível? - intervi. Nos dirigimos até a cozinha, fantasiando que, se preparássemos uma bomba de cafeína e injetássemos umas três doses bem servidas, dinamitaríamos aquela nuvem de interrogação e como prêmio de consolação, teríamos nossa sobriedade reestabelecida para pensarmos melhor sobre o assunto. Na primeira rodada de bombas negras e fumegantes, ao contrário de nossas expectativas, a pele foi ficando intrumescida. Na segunda rodada nossas expressões foram ficando vazias. Na terceira, já havíamos desistido e pensamos em voltar um outro dia. Na manhã seguinte retomamos o caso e aquelas miseráveis nuvens de interrogação continuaram a nos fitar com aquela cara de contusão. A princípio, chegamos a pensar em colocar a culpa de nossa falta de concentração no vizinho, que, aproveitando a ausência de sua angelical esposa, resolveu ceder sua residência para um festival que me atrevi a supor, por extrapolação do imaginário, que ensaiavam alguma coreografia natalina com o elenco do museu indígena, qualquer coisa entre um pajé charlatão sendo devorado por bailarinas exóticas e antropofagistas. Na manhã subsequente ao ritual de evocação dos deuses da floresta, o silêncio retornava sem rancores para o seu lugar de origem: no caso, meu quarto. Mas com ele, não veio o fim poeticamente esperado. E tivemos que catalogar o caso sobre a letra P. De Pendente. Imaginei que, se eu contruísse uma ponte com palavras e estendesse em sua direção eu teria forças o suficiente ao menos para acompanhá-la em sua busca solitária, já que não posso separá-la dessas desgraças. Tento esvaziar minha alma para encher a sua. E se me sacudisse pelos tornozelos, veria no chão de sua sala apenas este terço quebrado com que rezo todas as noites e nos benzo. Porque é só o que tenho. Um pouco de fé que nossas tentativas, ainda que fracassadas, cumpram o papel efetivo de preencher estes abismos criados pelo que já não alcançamos no outro. Saio daqui com a impressão de que passou todo esse tempo tentando desconhecer o que já foi feito. A arquitetura do interdito. Disso entendo. É só o que tenho feito. Contudo, ainda não descobri onde está o erro, talvez no projeto. E a interrogação insiste em martelar as têmporas, já tão feridas. Se me permite, vou afastar os seus cabelos da testa para pregar nela esta estrela que Charlote fez especialmente para você. Espero que não se importe com o fato de que ela seja feita de teias. Se observar com atenção verá que ela tem uma simbologia.
ResponderExcluirA estrela é marca da evolução. Em você, sempre contínua.
Que texto!
ResponderExcluirAproveito pra agradecer a visita lá no blogue. Parabéns por esta obra, é bela de ler.
Felicidades...
Estende-se infinito, imenso monolito. Nossa arquitetura...
ResponderExcluirTeu texto me lembra Cioran.
ResponderExcluirBelíssimo!
Flores...
Sabe para que serve uma obra prima? Apreciar, deleitar-se em sua beleza.
ResponderExcluirParabéns
Abraço
Gostei imensamente disso....bela escrita. Parabéns!
ResponderExcluir"E com isso adiaria, uma vez mais, o reencontro da casa, em suas coordenadas imutáveis: naquela longitude exata em que se desencontravam os tempos."
Diante dos inúmeros portões que nos interpõem a passagem, queria eu ter a simplicidade do amigo canino, que cava a terra e encontra do outro lado o prêmio do horizonte inédito. O que são essas coisas que nos impedem de sujar as unhas?
ResponderExcluirAjoelho de novo, ante dos teus domínios.
Olá Renata:
ResponderExcluirPassei por aqui hoje "com pressa" apenas para agradecer a atenção de estar seguindo o meu modesto blogue.
Gostei muito dos seus textos,mas quero lê-los devagar,saborear os pormenores,por isso voltarei com mais tempo para isso.
Um abraço da Dilita,de Portugal.
Ainda as minhas desculpas por errar o seu nome.
ResponderExcluirFalta de atenção da minha parte,lá está, a pressa não é boa companheira.
Achei muito interessante o inicio do seu blogue,de ótimo gosto com os barquinhos de papel como se de cartas fôssem.
(por vezes a simplicidade é rica!)
Portões demarcam, separam, mas me colocam a pensar e feliz teu texto que entre outras coisas faz-me imaginar que o morador que o construiu (achismo) permito-me, tinha medo dos fantasmas caminhantes que rondam as casas para acharem desprotegidos a quem assombrar.
ResponderExcluirAbraços.
No tempo dos encontros a aparição dos desencontros.
ResponderExcluirCadinho RoCo
tem um personagem da hilda que só escreve poemas sobre muros. conhece?
ResponderExcluirNão conheci essa coletânea não, mas já imagino com asco.
ResponderExcluirTem uma outra dessas que é contos para meninas ou mulheres ou algo assim da Clarice que toda a vez que vejo me enojo.
Tirando todos os outros problemas, me centraria em um que acho central que é o fato de achar a Clarice extremamente masculina. Não acha?
No fim, o que importa é o impacto vazio, não?
Roberta!
ResponderExcluirIncrível como tem gente que não atravessa; não flui e não se transforma em outra substância. Atravessar o portão para descobrir outra vida é quase uma violação de conduta... A casa e os seus limites impostos, também. Porque, às vezes, estar dentro assusta. O muro é o que me assusta; o portão me instiga. Porque atrás dele, sempre existe a possibilidade de ver além.
Bravo, Roberta! Seus textos sempre despertam em mim uma sensação de encantamento...
Adorei sua visita! Respondi ao seu comentário lá, como sempre.
Beijos, querida!
O saber que há porta talvez seja o mais cruel. Convite à tentação, à transgressão. Memorial de impossibilidade. Ou de incapacidade?
ResponderExcluirarquiteto
ResponderExcluir(ag)ora
o cenário do céu
sem céu e que – as estrelas sabem –
o crepúsculo urra no tédio
eu – arquiteto de cárceres
da memória do cinzazul
desnudo
do que fui além distante
uma e outra
palavra
se es-
vazia
no grito dos olhos
já fúnebres
a urdir a poesia
minha voz
já amarga (n)os tentáculos
do tempo e as pedras
que me consomem
este poeta
de ecos desva
irados
(ex)pira e (ex)trai
(d)as rochas duras
(d)o seu caminho
a polir as unhas
ah ! há rugas
no papel entretecido
onde a poesia a sorver
labirintos de granito
explora todo sibilar
do seu enigma
a pedra se faz poema
e verte poesia
do próprio ventre
- bruta não quase-paraíso
mas fragmentos
sobre a língua
vestida de fantasmas
e viagens
como um gueto âmbar
sem saída
eu – arquiteto de cárceres
da memória do cinzazul
desnudo
do que fui além distante
No retrato, não era a mulher, era a menina quem sorria. Escoltava-a uma espécie luz dourada a branquear-me as vistas. O lampejo de claridade deslizou-se pelas cortinas e limitou-se a encolher os ombros, para sentar-se à minha janela. E ali permaneceu por um bom tempo, em silêncio. Pouco teria importado que um exército de sombras a tivesse acompanhado. Era brilho. E ninguém poderia detê-lo. Permaneci ali, imóvel, temendo que o simples ato de respirar, pudesse assustar a luz que daquela miragem emanava. A luz daqueles olhos refletia uma beleza que doía só de olhar. Trincava-me o espelho dos olhos, mas o reflexo, continuava intacto. Pouco depois,como se temesse que a miragem fosse evaporar-se, apreendi-a entre os dedos e a apertei contra o peito. Depois, saí correndo como se pudesse e quisesse escondê-la na gaveta do peito. As mãos ainda tremiam quando peguei a cola no ateliê das memórias. Virei-a com todo cuidado como se temesse amassá-la. E derramei-lhe uma tonelada de cola líquida nas costas. A substância adesiva, era uma espécie de elixir da longa vida, de onde fantasiei, que, seu eu a vertesse sobre o retrato, a luz da menina que só vivia nele, jamais lhe escaparia. Emoldurei aquela miragem de luz, como fosse uma espécie de tela imaculada da alma. E era. Preguei-a no teto escuro do meu quarto, único lugar seguro do mundo, onde a menina e eu poderíamos estar à salvo. Temi, que, se fechasse os olhos, a miragem de luz pudesse dissipar-se e abandonar-me às sombras. E adormeci de olhos abertos, absorvendo-a.
ResponderExcluirTe esquento.
Me esquentas.
Nos aquecemos.
ESTÁ NASCENDO UM NOVO LÍDER: no morro do pau da bandeira - concluí.
ResponderExcluirrs...
Entendi que era alguém querendo entrar em algum lugar chamado casa , mas não entendi qual o sentido , não entendi o significado oculto, nem figurativo.... Mas vou ler novamente, calmamente , e mais uma vez até entender.
ResponderExcluir:::FER:::
Eu sei que quero entrar por esse portão, mas por nenhum outro, é esse e pronto. Pode abrir? Não pode abrir? Por que não pode? Como assim não me dirá? Ei, eu quero entrar, é tudo que eu mas quero agora, é entrar nesse lugar, por esse caminho, não há outro possível. Ei, por favor, eu quero, eu sonho, eu preciso entrar! Abre pra mim?!
ResponderExcluir...........
É um texto-labirinto e eu adoro labirintos! Parabéns! Há uma atmosfera de espera e de adentrares que movem a gente nessa vida tão cheia de querer entender, querer saber. As palavras formam um mistério perfeitamente pertinente dentro do universo amoroso.
ResponderExcluirVocê me fez filosofar sobre os meus portões aqui neste domingo de manhã... Beijo Roberta, muito bom o texto! Tati
ResponderExcluirBom Dia.
ResponderExcluirVou ser repetitiva, pois já li alguém que comentou sobre o barquinho rs. Eu achei lindo, um barquinho de papel cheio de palavras,(em fuga) ainda bem que ancoraram aqui.
"Não haver teto era jamais sofrer o risco de ruir."..."Por isso parecia-lhe que devia de novo correr na direção oposta ao portão..." ... "E com isso adiaria, uma vez mais, o reencontro da casa, em suas coordenadas imutáveis: naquela longitude exata em que se desencontravam os tempos."
Sou leiga no quesito entender literatura rs, mas gosto do que me toca a alma e o coração.
Tanto que leio e releio textos que gosto e me fazem refletir.
Parabéns.
Um grande abraço.
Elaine
E as correntezas do mar aberto se mostram mais fortes do que qualquer desígnio suicida...
ResponderExcluirSuicida porque o marinheiro já não navega sozinho. O encontro d'almas no barco de palavras fora divisor de águas...
Por mais que se tente, não se consegue afogar, não se consegue fugir...
Volta sempre à mesma praia, à mesma porta...
E encontra de novo... O inominado sentimento do que sempre foi, do que é e sempre será.
Em um primeiro encontro, já a magia da palavra "cumplicidade", figurava o selo de longo relacionamento afetivo,sugeria inteligência, sensibilidade. Agora, diante do prazer da leitura do seu blog,a confirmação de que vc,Roberta, é, realmente, jovem maga na arte do dizer, a cada linha vestindo em sutileza as figurações com que brinda os que a leem. Só sua capacidade de enriquecer detalhes adentraria aquele portão. Alegra-nos conhecê-la mais e melhor nas imagens expressivas que vasam uma bagagem interior evidenciada rica. Vera e Ailto
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