domingo, 30 de agosto de 2009

Desobediência


    Alerta aos banhistas de Boa Viagem: não se deve ultrapassar os arrecifes. Circunscrita na clausura de arenito a porção de mar que nos cabia. E assim, delimitados, tínhamos nossa experiência do mar, que era, apesar de tudo, fresca e boa.

    Tal é a inteireza do mar que um seu recorte guarda em si as propriedades do manto inteiro, vastíssimo, a cobrir em dobras de transparência nossa nudez de meninos.

    Do outro lado era o excesso, a diluição, o ilimitado, onde todas as linhas se decompunham em horizonte, como os corpos dos afogados. Se a curiosidade nos levava a subir os arrecifes para espreitar o mar além , voltávamos pálidos de susto, joelhos e mãos sangrando pela rasteira educativa de uma onda traiçoeira. O sal levava segundos para aderir às ranhuras e ardia, então, sem piedade, tornando em espinhos de culpa as unhas da sonhada sereia.

    O pai olhava-nos severo os joelhos esfolados, mas não ralhava, sabendo-nos sob o jugo de uma maior, mais pesada autoridade. Seu acolhimento doía-nos, tecido áspero de camisa roçando-nos sobre a chaga fresca.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Cegueira em Cor

Já o verão se impunha com sua luminosidade totalizante, que mal admite gradações. Passavam as pessoas apressadas, franzindo a testa, retorcendo as sobrancelhas ora a um lado, ora a outro, improvisando toldos para os olhos, em incômoda fotometria. Fosse como fosse, o movimento era de apequenar os olhos e não o de os escancarar, como aquele do senhor que me andava de encontro. Vinha eu, como quase sempre, de cabeça baixa, não apenas para me inteirar das irregularidades do passeio, ou para escapar ao assédio inoportuno da claridade. Na verdade, ia-me metida por dentro, tanto quanto podia, fiando-me, involuntária, pela seta resoluta dos sapatos finos, que me levavam de volta ao tedioso expediente.



Assim foi que, ao buscar a baqueta por trás da discreta percussão, vi-lhe primeiro a extremidade tateante da bengala no intervalo resvalante dos pés: tec tac tec. É um cego, concluí, levantando distraidamente a cabeça, no que se tornou central o objeto de minha visão, até então periférica. Foi quando dei pela expressão do homem, arregalando os olhos de opacas íris em minha direção, como fazemos nós, os de visão plena, para recobrar no escuro a acuidade dos contornos.


Talvez não fosse inteiramente cego, embora tivesse as órbitas de quase indistinto branco. Este homem carrega sua própria noite, foi o que pensei, sem mesmo dar pela metáfora, ao vê-lo estagnar, em plena, em excessiva claridade, como diante de um obstáculo invencível. Deve ser terrível ver o mundo em contra-luz, as coisas sendo percebidas como focos mais intensos de sombra dentro de uma moldura maior de escuridão. O homem girava a cabeça, como a buscar em torno de si alguma coisa ou alguém.


- A senhora está aí?

Interpelou. Seria a mim? Correu a vista vaga pelo vazio ao meu lado. Eu estava mais à direita. Então é que me dei conta de que, como eu havia estancado o passo, tornei-me para si, subitamente, invisível. Deve ser estranho ter as pessoas a desaparecerem para dentro do silêncio... Desta vez, consciente da metáfora, dei-me conta de que o fenômeno nos acontece aos videntes, em diferente grau...



O homem se acercou de mim. Suas pálpebras se desarquearam um pouco. Podia-se dizer que sentia a variação benfazeja de um milésimo de centígrado ocasionada por minha exígua sombra . Era pouco mais de duas da tarde, hora em que as sombras não nos caem longe do corpo. Aspirou o ar com violência, guiando-se por um novo estímulo, já que não tinha mais o fio condutor do salto soando contra o concreto. Fiquei estática como quando me vinham farejar na infância os cães das casas vizinhas.


- A senhora está aí?


Seria agora vexatório responder. Como explicar porque não respondera da primeira vez? Alguns passantes desaceleraram a marcha por curiosidade. Duas amigas olharam-se, desentendendo, seguindo em frente com fisionomia contrariada, ao concluírem, ao que tudo indica, que eu decerto fazia mofa ao deficiente.


Um rapazinho, vendo-me a imobilidade e o andrajoso homem tão rente a mim, perguntou-me, com os olhos, se estaria metida em apuros e se acaso poderia ser de alguma serventia. Fiz que não, sem me mover. Senti-me desleal, dizendo tanto com os olhos, enquanto me mantinha oculta ao cego sob a cortina da imobilidade.


Um ônibus que cruzava com estrépito varreu-lhe em cheio contra as narinas ávidas o meu perfume. O cego sorriu como se tivesse desvendado uma charada.

"Eu sabia. A senhora cheira a vermelho. O vermelho cai-lhe bem". Afastou-se sem mais, a bengala abrindo-lhe incerto caminho - tec tac tec - pela rua.


Foi como se me levasse de assalto a sanidade dos sentidos. De que me adiantava tê-los plenamente funcionais e, no entanto, incapazes de transcendência e poesia? Olhei acintosamente o sol, oferecendo-lhe à radiação causticante a crispação das retinas. Invejava-lhe, quase, a cegueira, pela recomposição misteriosa dos outros sentidos que lhe supriam a falta.

Queria, naquele momento, ter eu também o nariz capaz de aspirar matizes! Não resistindo ao incêndio de luz, cerraram-se-me os olhos, enrugando-se com força. O céu desapareceu vermelho por trás da irrigação das pálpebras. Sim, era tudo vermelho, cor de incandescências. Meu sangue e meu vestido. Minha chama e o manto da tarde. Era tudo, então, vermelho como o céu.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

O Exame Final


Pelo retângulo de vidro da porta do anfiteatro, via-se, em primeiro plano, as costas de Idalina, como se tivesse recuado excessivamente, acossada pelo crivo inquisidor da comissão julgadora. A banca, em semicírculo diante dela, disposta em atitude hostil com a atenção predadora de uma matilha. De que a julgavam, afinal?


Lina fizera versos. Desfiava-os desde pequena. Corria-lhe a mão veloz sobre a pauta do caderno no encalço do fugidio pensamento. A pauta – amparo. A pauta anteparo da escrita solta, esferográfica. Quando acabava um texto, seguia as linhas de trás para frente com os dedos e os dedos só, olhos fechados, perscrutando a trilha.


Por onde diabos se mete sentido palavra adentro? Espantava-se a cada vez. Mesmo porque a coisa, não raro, tomava rumos bem diversos do que pretendia: Lina sentava-se, muito concentrada, para repassar o ponto da última aula e eis que sentia troar em si, qual um estouro de cavalaria, palavras em plena fuga, pisando os cascos selvagens contra a linearidade da pauta. Em lugar da lição, o poema. Lina, atônita, sem ter como explicar-se aos professores.


Então lhe disseram que não estava bem escrever assim. Aquilo não tinha nada de produtivo. A menos, claro, que Lina estudasse as técnicas e os meios e as formas e os gêneros e os artifícios de se domar, disciplinar, profissionalizar, lapidar, polir, lustrar, subjugar a palavra ao gênio e oportunidade de seu autor. Não mais o jorro confessional, mas a perícia.


A palavra exigia, portanto, aproximação cautelosa. Pelo menos ao que parecia, não fosse certo que o curso que lhe indicaram sugeria fragmentar a palavra à sua unidade gráfica elementar, sua fração mínima, indivisível. E foi assim que Idalina formou-se em Letras. Letras! Juntá-las todas, ao longo de quatro anos, em intermináveis ensaios, citar fontes, digerir primeiro o pensamento dos outros, o texto dos outros, para, só então, elaborar o seu. E fazer valer a assinatura aposta ao pé da página.


O processo começava, portanto, por parecer-se. Primeiramente, havia que se imitar, transformando; que se plagiar, inovando e, pouco a pouco, pela via da decantação, perceber o que era efetivamente seu no que escrevia e o que não podia ser atribuído a mais ninguém. Só assim se firmaria nela a voz própria, autoral, até que, por fim, se lhe reconhecesse um estilo.


Sem dúvida, beneficiara-se imensamente do aprendizado. Lina empenhou-se laboriosa no estudo das técnicas de composição. Aprendeu truques e trunfos, potencializando a alquimia de seus textos. Escrevia como poucos. Cedo, empregou-se em uma pequena editora, fazendo resenhas de livros e algumas traduções. À sua maneira, tentava construir uma ponte entre o mundo da palavra sonhada – libérrima! - e o mundo da palavra possível - funcionária. Ou seria o mundo funcional e possível das palavras?


Mas agora estava ali, no dia do exame final, de costas para a porta, com o anfiteatro em semicírculo à sua frente. Ouvia-se o silêncio como um enxame de pensamentos, devorando-lhe em zumbido os lábios hirtos. Alguém da banca impacientou-se, lembrando-lhe de que não tinham todo o dia. Lina calava mais.


O examinador repetiu-lhe a pergunta, que se perdeu no ar antes de lhe chegar ao entendimento. Lina recuou mais. Tocava quase o trinco com a sobra da camisa. Lembrou-se de um verso sem propósito, como os que lhe tomavam o lugar das lições no antigo caderno. Murmurou-o baixo, a ponto apenas de lhe notarem a voz, trazendo mais confusão à já desnorteada audiência.


Secretamente, porém, sua tese se confirmava. As palavras não se deixam domar jamais. Os examinadores entreolhavam-se perplexos, perguntando uns aos outros, intrigados: mas o que é que ela está dizendo, afinal? Parece que vai dizer alguma coisa! Lina com os olhos brancos, revirados, entoava o tropel ininteligível das palavras em fuga.



domingo, 9 de agosto de 2009

Lembrando meu Pai



"Seguros como a mão do papai!" – dizia-nos sempre ao conduzir-nos pela travessia da rua, sobre o riscado da faixa. Com a outra mão, reforçava aos carros a ordem de parar, porque ali cruzavam o pai e a alegria, tomando-lhe de impulso o braço estendido como a um balanço, para saltar as intermitências da cor no asfalto.

Quando pequenas, não lhe percebíamos o tremor constante, não o das mãos que, à época, ofereciam-se firmes, mas esse outro que o tem acompanhado a vida inteira, um frêmito de animal posto a correr, afugentado. Fosse um cãozinho, seria dos que se aproximam a medo, encolhendo a cabeça aos afagos, nunca, porém, o cão de guarda por que lhe tomávamos na inconsciência da idade. No entanto, jamais se furtou a cumprir o papel que lhe era atribuído no micro-cosmo de conservação da espécie, protegendo-nos como podia por trás do coração vacilante.

Talvez cansado de ser menino grande é que gostasse, às vezes, de andar, curvando-se, mimetizado ao nosso tamanho. Nós, em nome do jogo, curvávamo-nos também, deixando-o, de novo, grande, com suas codorninhas a segui-lo pelos cômodos.

O homem da casa em sua solidão de mulheres. Cercado por três irmãs. E, em seguida, três filhas. A esposa para quem não raro perde o timbre das decisões, mesmo tendo voz de locutor, acostumada a fazer-se ouvir, indeciso entre ser manso e ser passivo - esta difícil medida. Pâpâiê: dizia-lhe criança em circunflexos, para imitar-lhe os graves da voz. Da voz impostada à voz deposta, optou por tomar parte através do silêncio.

E tem os olhos grandes, meu pai. Olhar comprido de menino deixado de fora da brincadeira. Certa vez, em uma de nossas viagens, dessas em que tentamos reunir as cinco pontas da família em torno da palma de um momento, calhou de chegarmos à cidadezinha em dia de quermesse e festa. Na praça histórica, a vaca feita de retalhos de papel e pano, soltava fogos pelos chifres, na algazarra de risos em que se parecem todas as línguas. Nós, filhas adultas, ríamos alto, queríamos, por travessura, andar no trenzinho da praça. O pai topou a brincadeira, sentou-se à janela, comportado, mas com o sorriso largo de quem sente vento no rosto. Minha irmã e eu sublinhamos com a troca cúmplice de olhares sua alegria sem jeito. Ao surpreender-se observado, corou, inseguro, por timidez de ser feliz. Assentimos com os olhos que sim, que aproveitasse o passeio. Encorajado, virou-se, mal cabendo em si, para a multidão de matizes, ousando um aceno anônimo para outro menino risonho que de fora o assistia.

Quando é que trocamos, pai, a posição das mãos entre o que leva e o que se deixa levar?

Comove-me vê-lo no saguão do aeroporto, aguardando insciente, bagagem na mão, que lhe diga, afinal, qual será o portão de embarque. Converso em inglês com o funcionário da companhia, língua que meu pai, tendo-me proporcionado o aprendizado, ele mesmo não entende bem.

E ele me segue, confiante, quando lhe digo que é por aqui. Faço-o correr, mais rápido do que lhe obedecem as pernas, digo-lhe que, desse jeito, vamos perder o vôo. Mas não o ponho no colo como faria a mim, para dar-me a certeza de que tudo ficaria bem.

Voamos juntos para destinos diversos. Seu mundo crescido à força de nós, filhas ciganas. Percebo que ele está ansioso e que, como todo bom adulto, constrói seu disfarce de controle. Seus grandes olhos me doem. Tenho ímpeto de abraçá-lo, irmanada ao que nele há de frágil existência. Quero emprestar-lhe a segurança possível, lembrar-lhe, paizinho, que, sim, é grande como todo homem (des)feito.

Pernoita em minha casa antes de seguir viagem – ele, agora, o visitante. Saímos para jantar, pela cidade que não é sua, pelo bairro que não é seu. Agora, sou eu que aponto os caminhos. Vamos conversando, escavando coisas. Memórias recentes e memórias remotas, suas preferidas. Conta-me do dia em que me trouxe a bonequinha preta; de quando levou-nos a Garanhuns para conhecer sua cidade natal, juntando rosto a alguns personagens de suas narrativas mirabolantes. Estou atenta como a menininha que fui, sentada em seu colo. Escuto-o com fascínio. Sempre gostei de ouvi-lo contar histórias.

Crescido em seu papel de pai, paga-me um sorvete, por gosto de prover, retomando-se, tirando a cédula meticulosamente dobrada do vão do bolso. E limpa-me o canto da boca com a ponta branca de um guardanapo, num gesto antigo de cuidar de mim.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Primeiro, o silêncio.

   Fazem-me calos nos dedos as palavras não escritas, por efeito do rude atrito, a primitiva busca por calor e iluminação. 
    Acumulam-se-me espessas sob a pele, doridamente.
    Às vezes, tento drená-las por canalículos de inspiração. Mas saem-me com dificuldade. E não curam. Apenas reabrem velhas feridas de silêncio.