sábado, 27 de agosto de 2011

In: Cognitum

    O dia começara denso de símbolos e levemente espiralado. A tendência do movimento era para dentro. Não necessariamente para baixo, mas para dentro. Era sempre com vago estranhamento que se flagrava pensando, a coisa em pleno gerúndio, acontecendo.
Ainda se lembrava da primeira vez. Devia ter uns quatro anos, sentada no banco de trás do carro, espremida entre os irmãos e ainda meio sonolenta, para cumprir o ritual da praia domingueira. "Mesmo que pareça que todos não gostam de praia". Olhou em volta, assustada. Quem disse isso? E a voz se destacava sobre todas as outras, agora nitidamente inquirindo: quem disse isso?
Os irmãos cantarolavam as conhecidas músicas de encurtar caminho. Os pais conversavam afazeres. E a voz era, definitivamente, a sua, a despeito do silêncio estatelado dos lábios. Só depois soube como aquilo oficialmente se chamava, a voz de dentro da cabeça.
De primeiro, pensava baixinho, com medo de que os outros ouvissem. Então observou que podia pensar com estrondo e sobre as próprias pessoas presentes, sem que ninguém desse por isso. Era fantástico existir com tanta privacidade! Embora mais tarde viesse a lamentar o monólogo: uma pena que nunca ouvissem, sobretudo quando se tratava de pedido de socorro.
Desde então, tornou-se seu maior passatempo: observar a voz, experimentar direcioná-la e, oh, não era fácil, não era mesmo tão trivial. Não sabia, por exemplo, se a voz desaparecia ou se era um falar contínuo e ela é que nem sempre escutava. Como também não lhe era claro, se a voz era dela ou, assim mais sutil, se a voz era ela. Como se pensar lhe antecedesse mais do que lhe consistisse. Inexistira no quando não pensara? Ou melhor, no enquanto não dera por si mesma, pensando?
Certo era somente que, sempre que se fixava, a voz estava dizendo alguma coisa. Pegava os assuntos do meio. Mas também podia propor novos tópicos e a voz, simplesmente, discorria. Discorria espertamente sobre tudo, como o índice de uma inesgotável enciclopédia. E aquilo de que não sabia, a voz inventava.
De forma que ser era aos sustos. Alumbramentos. Lampejos. E, então, revelava-se-lhe a marca d'água do encanto na contraluz do espouco. Havia que decorar as formas em sua nitidez de relâmpago, antes que lhe girasse o farol. Diziam-lhe lúcida, porque sabia recitar a luz de dentro do escuro. Cegos todos. Ela, inclusive.
Fosse como fosse, por mais que se dedicasse, nunca conseguia pensar todo o tempo. Ou saber o tempo todo sobre o que pensava. Isso aprendera a custo: mesmo a consciência não era uma forma maciça de pensar. Havia descosturas, descontinuidades, intervalos.
Fora a contaminação de sentir. Aliás, havia uma interessantíssima interação entre pensar e os sentidos, o muito que se influenciavam mutuamente. Pensar tanto aguçava-os, como os suspendia. Basta dizer que tanto podia se dar de pensar ser olhar sem ver, como de o tino concluir pelos olhos. 
Como no dia em que, supondo-se concentrada sobre os gráficos do quadro-negro, reparou na imagem que lhe propunha a janela: um cadarço encardido, que fazia pender do alto do poste uma botina, a balançar a sola grossa sobre o despropósito de não haver chão. Resultado era quase sempre perder as explicações e ganhar a dimensão do enigma.