Texto publicado originalmente sob o título "Há Vácuos",
na coluna quinzenal da autora, intitulada "Desde os Olhos", no site TremaLiteratura
Muito já se falou do poder revelador do vinho, comumente associado ao transparecimento da verdade pelo amolecimento das censuras. Esta língua que pesa não pode ser a nossa e fala aos tropeços desejos tão íntimos, que nos pomos a prestar atenção, primeiro, por curiosidade, como se estivéssemos a ouvir falar de outra pessoa e, quando damos pelo fato de que o texto falado é o nosso, o último ponto já, de novo, nos selou o discurso e a audiência nos encara atônita. Durma-se com um barulho desses! Mas o bêbado dorme. Ressona alto de pura canastrice, ensaiando a amnésia iminente.
Estes efeitos vínicos já foram exaustivamente catalogados, esmiuçados, esclarecidos científica e anedoticamente nas rodas de médicos e amigos. O que carece mesmo de estudo são os surpreendentes efeitos do café sobre o comportamento humano.
Será por que nos põe excessivamente despertos, hipervigis, capazes de audição supersônica, portanto, médiuns perfeitos para a hiperrealidade? O café fuma por nós, esfuma-se em nós, soprando-nos a desmatéria de seu fumegar boca adentro. O barato que dá é que nos desbarata, nos faz ser tão lúcidos e tão exatos em nosso pensar, que ninguém em sã consciência, nisso que se convencionou chamar de “são” e de “consciência”, acreditaria nas epifânicas formulações que fazemos sob seu influxo. Nada é mais inverossímil que a verdade.
Sua prolongada abstinência pode ser perigosa. Tomemos como exemplo o caso da amiga que, ao ser perguntada, no meio de tarde baldia, quanto ao que queria beber, alisou os lábios, Reichianamente, com o pente úmido da língua, tentando perceber-lhes a intenção, e começou a tentar exprimir para o garçom essa coisa, a princípio, indefinível, que é o desejo: “Deixa eu ver... Eu acho que eu quero... Eu quero algo... preto...”, disse com olhos subitamente inequívocos, de quem antegoza uma substância, ao que eu me apressei em objetivar:
— Querida, vai um café ou uma coca-cola?
para não dar margem a descabidas saliências por parte do garçom, que era preto e bem queria ser objeto da sede de tão formosa mulher.
Que ninguém duvide dos mistérios deste grão. Teve até um rapaz que cismou em grifar no balcão para os demais colegas porque diabos a amiga pedira café descafeinado. Sua indignação parecia desproporcional, como se soasse demasiado nítida no intervalo da música a palavra “bolo” e ninguém soubesse exatamente do que se tratava. Ora, apenas aos que não são dados a entrelinhas, o prosaico diálogo passaria despercebido.
Mas aí é que está: no fundo, apenas alguém como eu, uma observadora neutra, que já tivesse consumido seu ristretto em um único e sôfrego gole, trazendo, portanto, o coração e as pupilas dilatadas para a dimensão do invisível, estaria em condições de compreender o subtexto lancinante daquele comentário.
A pergunta era: como ela podia se contentar com uma coisa em sua desnatureza? Em contraponto a ele, que queria a integralidade da coisa, que queria viver a coisa-café em toda a sua possibilidade.
Ela respondeu meio sem jeito de se ver assim, confrontada, girando a aliança, como fazia quando estava nervosa, que, às vezes, se quer muito sentir o sabor da coisa, sem que, no entanto, nos seja possível arcar com os efeitos dela. Se não fosse pela taquicardia, se não fosse pela insônia, balbuciava, justificando-se.
É claro que ela também adorava café, ele o sabia muito bem. Sabia que suas narinas se punham alerta ao mero contato com o cheiro que dava nome à hora, que dava gosto à pausa. Como não querer fruir a bebida-hálito? Ela mesma o havia convidado, logo que detectaram este interesse comum, para fazerem juntos um curso de baristas, ao que ele, na época, declinou, alegando falta de tempo.
Agora, ela é que já não podia acompanhá-lo na intensidade do café. Tentava explicar que ela ainda o queria. O café. Que beberia humilde o café possível, o café que não desordenasse seu sono, deslocando a madrugada para as mais imprevistas horas.
Ferido, ele queria atingi-la, apontando com escárnio do que ela já não era capaz. Precisava diminuí-la, desqualificar suas escolhas. Pediu mais um espresso duplo, como quem manda servir um trago. Tomou sem açúcar, sem esperar esfriar, sem desviar os olhos dos dela, desafiador. Só para mostrar pra ela que não, não topava isso de café descafeinado.
— Querida, vai um café ou uma coca-cola?
para não dar margem a descabidas saliências por parte do garçom, que era preto e bem queria ser objeto da sede de tão formosa mulher.
Que ninguém duvide dos mistérios deste grão. Teve até um rapaz que cismou em grifar no balcão para os demais colegas porque diabos a amiga pedira café descafeinado. Sua indignação parecia desproporcional, como se soasse demasiado nítida no intervalo da música a palavra “bolo” e ninguém soubesse exatamente do que se tratava. Ora, apenas aos que não são dados a entrelinhas, o prosaico diálogo passaria despercebido.
Mas aí é que está: no fundo, apenas alguém como eu, uma observadora neutra, que já tivesse consumido seu ristretto em um único e sôfrego gole, trazendo, portanto, o coração e as pupilas dilatadas para a dimensão do invisível, estaria em condições de compreender o subtexto lancinante daquele comentário.
A pergunta era: como ela podia se contentar com uma coisa em sua desnatureza? Em contraponto a ele, que queria a integralidade da coisa, que queria viver a coisa-café em toda a sua possibilidade.
Ela respondeu meio sem jeito de se ver assim, confrontada, girando a aliança, como fazia quando estava nervosa, que, às vezes, se quer muito sentir o sabor da coisa, sem que, no entanto, nos seja possível arcar com os efeitos dela. Se não fosse pela taquicardia, se não fosse pela insônia, balbuciava, justificando-se.
É claro que ela também adorava café, ele o sabia muito bem. Sabia que suas narinas se punham alerta ao mero contato com o cheiro que dava nome à hora, que dava gosto à pausa. Como não querer fruir a bebida-hálito? Ela mesma o havia convidado, logo que detectaram este interesse comum, para fazerem juntos um curso de baristas, ao que ele, na época, declinou, alegando falta de tempo.
Agora, ela é que já não podia acompanhá-lo na intensidade do café. Tentava explicar que ela ainda o queria. O café. Que beberia humilde o café possível, o café que não desordenasse seu sono, deslocando a madrugada para as mais imprevistas horas.
Ferido, ele queria atingi-la, apontando com escárnio do que ela já não era capaz. Precisava diminuí-la, desqualificar suas escolhas. Pediu mais um espresso duplo, como quem manda servir um trago. Tomou sem açúcar, sem esperar esfriar, sem desviar os olhos dos dela, desafiador. Só para mostrar pra ela que não, não topava isso de café descafeinado.