sábado, 26 de março de 2011

Café?

Texto publicado originalmente sob o título "Há Vácuos", 
na coluna quinzenal da autora, intitulada "Desde os Olhos", no site TremaLiteratura

Muito já se falou do poder revelador do vinho, comumente associado ao transparecimento da verdade pelo amolecimento das censuras. Esta língua que pesa não pode ser a nossa e fala aos tropeços desejos tão íntimos, que nos pomos a prestar atenção, primeiro, por curiosidade, como se estivéssemos a ouvir falar de outra pessoa e, quando damos pelo fato de que o texto falado é o nosso, o último ponto já, de novo, nos selou o discurso e a audiência nos encara atônita. Durma-se com um barulho desses! Mas o bêbado dorme. Ressona alto de pura canastrice, ensaiando a amnésia iminente.

Estes efeitos vínicos já foram exaustivamente catalogados, esmiuçados, esclarecidos científica e anedoticamente nas rodas de médicos e amigos. O que carece mesmo de estudo são os surpreendentes efeitos do café sobre o comportamento humano.


Será por que nos põe excessivamente despertos, hipervigis, capazes de audição supersônica, portanto, médiuns perfeitos para a hiperrealidade? O café fuma por nós, esfuma-se em nós, soprando-nos a desmatéria de seu fumegar boca adentro. O barato que dá é que nos desbarata, nos faz ser tão lúcidos e tão exatos em nosso pensar, que ninguém em sã consciência, nisso que se convencionou chamar de “são” e de “consciência”, acreditaria nas epifânicas formulações que fazemos sob seu influxo. Nada é mais inverossímil que a verdade.
 
Sua prolongada abstinência pode ser perigosa. Tomemos como exemplo o caso da amiga que, ao ser perguntada, no meio de tarde baldia, quanto ao que queria beber, alisou os lábios, Reichianamente, com o pente úmido da língua, tentando perceber-lhes a intenção, e começou a tentar exprimir para o garçom essa coisa, a princípio, indefinível, que é o desejo: “Deixa eu ver... Eu acho que eu quero... Eu quero algo... preto...”, disse com olhos subitamente inequívocos, de quem antegoza uma substância, ao que eu me apressei em objetivar:


— Querida, vai um café ou uma coca-cola?


para não dar margem a descabidas saliências por parte do garçom, que era preto e bem queria ser objeto da sede de tão formosa mulher.


Que ninguém duvide dos mistérios deste grão. Teve até um rapaz que cismou em grifar no balcão para os demais colegas porque diabos a amiga pedira café descafeinado. Sua indignação parecia desproporcional, como se soasse demasiado nítida no intervalo da música a palavra “bolo” e ninguém soubesse exatamente do que se tratava. Ora, apenas aos que não são dados a entrelinhas, o prosaico diálogo passaria despercebido.


Mas aí é que está: no fundo, apenas alguém como eu, uma observadora neutra, que já tivesse consumido seu ristretto em um único e sôfrego gole, trazendo, portanto, o coração e as pupilas dilatadas para a dimensão do invisível, estaria em condições de compreender o subtexto lancinante daquele comentário.


A pergunta era: como ela podia se contentar com uma coisa em sua desnatureza? Em contraponto a ele, que queria a integralidade da coisa, que queria viver a coisa-café em toda a sua possibilidade.


Ela respondeu meio sem jeito de se ver assim, confrontada, girando a aliança, como fazia quando estava nervosa, que, às vezes, se quer muito sentir o sabor da coisa, sem que, no entanto, nos seja possível arcar com os efeitos dela. Se não fosse pela taquicardia, se não fosse pela insônia, balbuciava, justificando-se.


É claro que ela também adorava café, ele o sabia muito bem. Sabia que suas narinas se punham alerta ao mero contato com o cheiro que dava nome à hora, que dava gosto à pausa. Como não querer fruir a bebida-hálito? Ela mesma o havia convidado, logo que detectaram este interesse comum, para fazerem juntos um curso de baristas, ao que ele, na época, declinou, alegando falta de tempo.


Agora, ela é que já não podia acompanhá-lo na intensidade do café. Tentava explicar que ela ainda o queria. O café. Que beberia humilde o café possível, o café que não desordenasse seu sono, deslocando a madrugada para as mais imprevistas horas.


Ferido, ele queria atingi-la, apontando com escárnio do que ela já não era capaz. Precisava diminuí-la, desqualificar suas escolhas. Pediu mais um espresso duplo, como quem manda servir um trago. Tomou sem açúcar, sem esperar esfriar, sem desviar os olhos dos dela, desafiador. Só para mostrar pra ela que não, não topava isso de café descafeinado.

terça-feira, 15 de março de 2011

Reptilia

Quando morávamos em Jaguaruana, interior do interior do interior do Ceará, meu pai tinha a delicadeza de guardar os pequenos ovos, encontrados no chão do quintal poeirento da nossa casa, no bolso do paletó. Pendurava no guarda-roupa aquela inquietante latência.

Conferia o status da gestação diariamente, examinando os ovos como ultrassonografias na contraluz. Quando a casca começava a rachar, levava-os de volta ao quintal. E, acocorados em volta deles, esperávamos.

Eram cobras que, invariavelmente, eclodiam dos pequenos ovos. Mas meu pai, juiz consciencioso, não queria correr o risco de matar passarinhos inocentes.

Aos filhotes de cobra executava objetiva e eficientemente, como os que apenas cumprem sentenças, dispensados de fazer juízos de valor. As cobras já nasciam biblicamente culpadas.

Um dia, a pequena cidade acordou em polvorosa. Mataram! Mataram a D. Lalinha! No dia do júri, o marido, réu confesso, explicou que a esfaqueou repetidas vezes, nos olhos e na garganta, para que ela aprendesse a não ficar por aí, dando desfrutes com forasteiros.

No processo, ficou comprovado que o forasteiro havia batido respeitosamente à porta  de D. Lalinha, cumprindo os costumeiros "ô de casa", para pedir um copo d'água e assuntar quando acaso saía o próximo ônibus daquele cidade-beco, sem-saída.

O marido chegou do trabalho e viu o tal forasteiro se afastando de sua casa, a mulher debruçada à janela, acenando com um sorriso.

Condenado por homicídio qualificado, o marido não demonstrava remorso. O que é que queriam que ele pensasse?

Aprovar, não aprovavam. Mas, estranhamente, parece que o compreendiam. Ali, as mulheres, assim como as cobras, também nasciam biblicamente culpadas.

quarta-feira, 9 de março de 2011

A Visita

Texto publicado na coluna quinzenal da autora, intitulada "Desde os Olhos", no site TremaLiteratura


Autorizado pela mão da mãe que o tranquilizava quanto a ser amor seguro, eis que o menino, pouco a pouco, foi se chegando, farejando a tia com os cílios. Suas reservas eram proporcionais à sua pequena estatura de ano e meio. Mal se moveram os ponteiros, o menino era já um leque de abraços. O rosto da tia se arejava de sorrisos enquanto esvaziava em alta compressão o pente de beijos que lhe pendia da metralhadora dos lábios.
Desconhecedor de viagens e da noção de longe e perto, a tia era para ele uma fantástica aparição. Incrível que da cartola da casa surgisse pela manhã, depois de descartada a incômoda secreção dos olhos, pessoa nova pra cuidar da gente!
Embora até então estranha, a tia era cheia de enternecida atenção para consigo, atenção esta que era ao menininho coisa muito familiar. Lembrava colo de mãe e consolava para quase tudo, menos queda, quando machucava de verdade, e o sono escuro da noite. Os olhos da tia eram bons para confirmar situações de “pode” e “cuidado!” e encorajamentos de “isso mesmo!” e “muito bem!”, sempre que o indicador pousava certeiro sobre a posição do nariz, sobre cujo incerto paradeiro muito se perguntava. Cadê o nariz do neném?  
 Nisso de ser perguntado sobre o cadê de coisas e pessoas, o menino sinalizou reconhecimento da tia. De primeiro, concedia-lhe a direção cúmplice dos olhos. Depois a mira convicta do indicador. A tia era pessoa presente, habitante de seu aqui-agora. A tia era. A tia estava. Na linguagem do menino, os verbos coincidiam pelo intransitivo da realidade apreendida.
Experimentou chamá-la. O nome da tia ecoou sonoro, desencadeando “Ôôôôô”s e estalos pipoucantes de beijos de artifício. O diálogo então consistia nisso de chamar pela tia e ela, infalivelmente, responder. De cada vez, com redobrada doçura. O nome era, portanto, a substantivação da concretude de haver tia e do alcance de seu abraço. Como a palavra "água" tinha o efeito benfazejo e imediato de fazer minar mamadeiras no deserto das mais intempestivas sedes.
Mas eis que um dia, sem que as lágrimas que marejavam o olhar da tia fossem tomadas por aviso, o menino acordou de um estranho passeio ao aeroporto, de volta à casa de muitos cômodos. Tomou a rota daquele quarto raro, que só existia de vez em quando - o quarto de visitas - aonde a tia acordara dias a fio aos proclames do nome.
Chamou sob os travesseiros. Tapou e destapou reiteradas vezes o esconderijo dos olhos. Chamou pelos corredores, pela escada e a tia não acorreu. Ficou o menino choroso com o nome quebrado nos lábios. Por que é que não funciona?
O chamado, porém, atravessava a distância e desassossegava o coração da tia, que ficou inútil, sem colo e consolo, por não poder embalá-lo nos braços. Como dizer em língua que o menino entendesse que o que não está presente ainda assim existe e nos ama de amor cheiroso e real? No tempo do menino não existe o “até já”. Somente agora é tempo em que se fie. Se pelo menos pudesse dar corpo à saudade...
O menino, que ainda não entendia de abstrações, tratou de calar o nome da tia, como se desaprende aos poucos um jogo que já não se joga. Guardou-o junto às quinquilharias desmanteladas de suas afeições: uma maraca que já não chacoalha, uma chupeta sem borracha, o tiptop preferido, amaciado pelo muito uso, de onde agora lhe escapa o dedão.