(Para todos aqueles para quem
o pouco é a única dosagem mortal)
Uma semana transcorrera. Uma semana transcendera. Esta mulher não é mais a mesma. Já não é mais a outra, por quem lhe tomavam. Esta mulher só responde agora pelo nome de certidão, sem a transigência do diminutivo.
E era novo chamar-se assim, sem ser por castigo ou por formalidade. Como mais novo era responder à palavra-nome com a correspondência exata da identidade, sendo a palavra.
Intuía que alguma coisa extraordinária se processara naqueles dias. Nunca antes o que importava estivera ao alcance, tão dócil à formulação, para consulta imediata, como num glossário. A palavra a levou pela mão, pelos sentidos todos. Os dela. Os seus próprios sentidos vários.
Tudo tão claro no dentro escuro. Fizera-a bem os dias se passarem nublados, como que soprados, nuvens-de-sabão, da membrana moldável do sonho, dispensando-a de existir lá fora, onde fazia sol indelicado e sem nuances.
Sabia, vagamente, que era preciso defender-se de antes.
A graça e sua precariedade de bolha, nisto consistindo seu preço. Este estado de clarividência era o mais próximo de ser a que jamais chegara. Por isso mantinha, supersticiosamente, as coisas nos lugares em que as vira pela última vez, desde o click com que se aniquilaram as margens.
O que se fizera ausência, conservava em marcação de ausente, delimitado dos espaços regularmente vazios por uma camada apenas mais fina de pó.
Resistia a dormir e arriscar-se a perder o fio da meada. Apalpava o pulso da insônia certificando-se de que ainda era hoje (ontem), hoje pela continuidade que a vigília dava, hoje sem a solução de continuidade do sono. Se era certo que ele retornaria amanhã, então, se não dormisse, não o tornaria a ver. Mas ele não era o antes, embora usasse os mesmos sapatos. E ela , no ainda de ontem, hoje ainda o amava.
Abriu acuada as portas do hoje para a intrusão do que regressava. Ao adentrar a casa, a primeira coisa que o outro fez foi vasculhar-lhe a órbita perplexa do olhar em busca da familiaridade antiga. Quem era ela? Uma semana vivera esta mulher sem a moldura da convivência, em contato direto com as costuras da alma. Achou sintomático encontrá-la vestida assim, pelo avesso.
Como voltar — ela, que não houvera partido — depois de ter vivido tão integralmente esse isto vasto que era ela, entrelinha do inominável, a pauta da assinatura?
O outro chegara novidadeiro, a contar os fatos marcantes, a ementa exótica dos temperos. Fatos? Ela recuava de horror. Depois dos últimos desacontecimentos, desconhecia tudo que não fosse a dimensão de ser.
Ele voltar, confortava-a. Mas ela nunca criara tanto como de dentro do próprio incômodo.
Ele chegar, encolhia-a. Propunha às coisas um estado de simplicidade de que, por hora, não se sentia capaz. Como se regurgita o remédio, que promete tranquilidade. Quem disse que queria de novo a sedação do equilíbrio?
Não sabia se sua intensidade jamais teria cura, debalde os tratamentos prolongados a que se havia submetido. Pena mesmo, pensou, demorando-se, enquanto mastigava a pílula, é isso de intensidade não ser suficientemente contagioso.