quarta-feira, 20 de abril de 2011

Curare

(Para todos aqueles para quem
o pouco é a única dosagem mortal)

Uma semana transcorrera. Uma semana transcendera. Esta mulher não é mais a mesma. Já não é mais a outra, por quem lhe tomavam. Esta mulher só responde agora pelo nome de certidão, sem a transigência do diminutivo.

E era novo chamar-se assim, sem ser por castigo ou por formalidade. Como mais novo era responder à palavra-nome com a correspondência exata da identidade, sendo a palavra.

Intuía que alguma coisa extraordinária se processara naqueles dias. Nunca antes o que importava estivera ao alcance, tão dócil à formulação, para consulta imediata, como num glossário. A palavra a levou pela mão, pelos sentidos todos. Os dela. Os seus próprios sentidos vários.

Tudo tão claro no dentro escuro. Fizera-a bem os dias se passarem nublados, como que soprados, nuvens-de-sabão, da membrana moldável do sonho, dispensando-a de existir lá fora, onde fazia sol indelicado e sem nuances.

Sabia, vagamente, que era preciso defender-se de antes.

A graça e sua precariedade de bolha, nisto consistindo seu preço. Este estado de clarividência era o mais próximo de ser a que jamais chegara. Por isso mantinha, supersticiosamente, as coisas nos lugares em que as vira pela última vez, desde o click com que se aniquilaram as margens.

O que se fizera ausência, conservava em marcação de ausente, delimitado dos espaços regularmente vazios por uma camada apenas mais fina de pó.

Resistia a dormir e arriscar-se a perder o fio da meada. Apalpava o pulso da insônia certificando-se de que ainda era hoje (ontem), hoje pela continuidade que a vigília dava, hoje sem a solução de continuidade do sono. Se era certo que ele retornaria amanhã, então, se não dormisse, não o tornaria a ver. Mas ele não era o antes, embora usasse os mesmos sapatos. E ela , no ainda de ontem, hoje ainda o amava.

Abriu acuada as portas do hoje para a intrusão do que regressava. Ao adentrar a casa, a primeira coisa que o outro fez foi vasculhar-lhe a órbita perplexa do olhar em busca da familiaridade antiga. Quem era ela? Uma semana vivera esta mulher sem a moldura da convivência, em contato direto com as costuras da alma. Achou sintomático encontrá-la vestida assim, pelo avesso.

Como voltar — ela, que não houvera partido — depois de ter vivido tão integralmente esse isto vasto que era ela, entrelinha do inominável, a pauta da assinatura?

O outro chegara novidadeiro, a contar os fatos marcantes, a ementa exótica dos temperos. Fatos? Ela recuava de horror. Depois dos últimos desacontecimentos, desconhecia tudo que não fosse a dimensão de ser.

Ele voltar, confortava-a. Mas ela nunca criara tanto como de dentro do próprio incômodo.

Ele chegar, encolhia-a. Propunha às coisas um estado de simplicidade de que, por hora, não se sentia capaz. Como se regurgita o remédio, que promete tranquilidade. Quem disse que queria de novo a sedação do equilíbrio?

Não sabia se sua intensidade jamais teria cura, debalde os tratamentos prolongados a que se havia submetido. Pena mesmo, pensou, demorando-se, enquanto mastigava a pílula, é isso de intensidade não ser suficientemente contagioso.

domingo, 10 de abril de 2011

A Irmã Reencontrada


 Para Lídia Martins
irmã de palavras.

Desde os olhos, mas só quando deixavas a alma ficar debruçada no parapeito dos cílios, olhando perigosamente o abismo de pessoas que cruzavam a rua erma em que vivias. Sem ainda levantar os olhos para os teus, para certificar-me de que eras tu e de que me vias, eu intuía a densidade de tua presença, com as ramificações periféricas do órgão do sexto sentido - o sismógrafo que registra a intensidade dos mais sutis movimentos interiores, sejam próprios ou alheios.

Era uma perturbação sutil na lâmina d'água, como se o remo que o provocava ainda estivesse longe. Com um olho fechado dos que perscrutam, aproximei o outro da abertura do copo: uma minúscula borboleta, quase apenas um grão de voar, de asas não inteiramente eclodidas, debatia-se na superfície. Eu sabia o quanto era insuportável viver na superfície e por isso empurrei-a com a ponta do dedo para o fundo do copo, onde ela poderia, finalmente, respirar, como de fato observei que fazia, pela efervescência que, pouco a pouco, tomava conta da água.

Primeiro, pequenas bolhas, como se hesitasse em levantar fervura. Depois, bolhas maiores, que se desprendiam do copo e revoavam janela afora, estourando, no mais das vezes, a pequena distância, tão logo entravam em contato com a transparência azul.

Assim, corri à rua, ao encalço de uma grande bolha, esta que a borboleta-grão tomou como nave para escapar à estreiteza do copo. Suas asas incipentes propulsionavam desgovernadamente o voo da bolha por dentro, a alguns, poucos palmos da minha cabeça. E foi assim que vi, por trás das neófitas asas cintilantes, tua alma-irmã debruçada à janela.

Como soube que eras tu, perguntaste-me depois. Brinquei, tentando quebrar o gelo, que ninguém fazia silêncio assim, com tamanho estardalhaço. Mas teus olhos se estilhaçaram de lágrimas e eu entendi que não era ainda o tempo do riso. 

Mostrei, então, no pedaço amassado de papel que trazia no bolso, a parte da palavra que estava comigo. Foi aí que  tu te lembraste que, quando despertaste à beira do Rio, numa pequena canoa em que vagaste à deriva por muitos e muitos anos, trazias em volta do pescoço um pingente-relicário, que entesourava um outro recorte, semelhante ao meu. 

Cada pedaço era uma palavra inteira e, ainda assim, a irregularidade das bordas rasgadas  implorava uma complementaridade de encaixe. A mim tocava uma constância escura. A ti, ai de ti: o turbilhão. Abrimos, ao mesmo tempo, a palma da mão, com a palavra-pedaço que carregávamos dentro: Eu, sempre. Tu, viva.