sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Vegetativo

O dia gastou-me até o caroço de mim. O tempo e suas mandíbulas de ponteiros roeram-me ainda o hermético núcleo, empurrando-me contra o duro palato, para, então, girar-me contra a língua espessa das horas à cata de alguma sobra nas reentrâncias. Julgando que me esgotara, deitou-me fora, farejando os restos com o desdém dos cães às tigelas vazias.

...Mas o caroço é a astúcia das coisas, resguardando-se...

Partisse-me o grão, aí sim, mordia-me em cheio o ser. Na porção-grão irredutível de mim, germino a lenta reinvenção da força. Afinal, a palavra de ordem de toda semente é vingar.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Se eu me chamasse Raimundo...

Já alertava o poeta: “Mundo, mundo, vasto mundo/ Se eu me chamasse Raimundo/ Seria uma rima, /Não seria uma solução”. Não sei o que é que há com os antigos nomes das coisas, os que nos amparavam, em meio ao caos cotidiano, com o conforto da familiaridade. 

Em tempos de modernidade líquida, há um inflacionamento de termos, que provoca a troca alucinada das etiquetas, se não mais a dos preços, como nos idos do plano cruzado, agora sobretudo das cores. Daí que, hoje em dia, as atividades mais simples me infligem a angústia de não mais conseguir me comunicar eficientemente com os meus pares.

O segmento de roupas, principalmente o feminino, vem sendo assolado por uma peste hortifrutigranjeira, o que tem ensejado o escalonamento hidropônico dos meus níveis de espanto. 

Dia desses, eu perguntei à vendedora se tinha o meu número do vestidinho verde da vitrine. 

Ela:  
— Verde??? (visivelmente confusa)
Eu: 
 — Exato. Verde, sabe como? Verde.
Ela (como se eu tivesse inaugurado o conceito de verde na história da humanidade): 
 —Verde???

Sua interrogação era ameaçadoramente perplexa e já atraía sobre nós a atenção dos demais.
Eu, intimidada, limitei-me a apontar o vestido, com um indicador trêmulo e sem convicção.

Ela, como a restabelecer para si uma ordem perdida: 
 — Ah tá, você quer dizer o hortelã.

Eu quase pedi para ela trazer também o rosinha, de um outro modelo tomara-que-caia, mas, precavida, preferi não arriscar dizer o nome da cor em si e improvisei,  afetando ser descolada:
 — Aproveita e me traz o sashimi.

Ora, meu bem, se a moda são as cores cruas ela que se vire para me entender!

Nem mesmo as cores primárias são poupadas da nova onda: amarelo virou limão-siciliano e vermelho, dependendo do tom, é cor-de-carne; tomate ou não podemos esquecer a variação do cereja. Temos que agora o bege é macadâmia. Se for bem clarinho vira lichia.  E o ocre, Deus meu!, o ocre só existe na referência saudosista dos que foram educados na infância à base de lápis-de-cor Faber-Castell.  Se precisar, algum dia, pedir numa loja uma peça de roupa ocre, experimente dizer algo do tipo “casca de kiwi”.

Tudo isto eu pensava enquanto via outra vendedora prestando interessante consultoria a uma garotinha, que a tudo ouvia com olhos piscantes e atentos:

— Então, você pode combinar essa calça pau-de-canela com um topzinho mostarda.

E eu me pergunto: isso não dá indigestão? Ou a menina realmente comprou a idéia de que, vestida de especiarias, com muito mais propriedade, seria chamada nas ruas de “gostosa”? 

Mas não são só os hortifrutigranjeiros que estão em alta no mundo da louca costura. Temos também a utilização indiscriminada de conceitos arquitetônicos.

Certa feita, a vendedora me trouxe uma blusa uns quatro números acima do meu. Eu perguntei, já um pouco melindrada: “escuta, você não tem tamanho 38?”. Ela me responde blasé: “esse é o 38, meu bem. É que essa blusa tem um corte amplo. Está na última moda”. 

Aí, eu é quem pergunto:

 — Amplo???

Deve ser por isso que chamam de “último grito”. O da razão, antes de desfalecer.