sábado, 20 de novembro de 2010

Os Salteadores

Era uma cidade-balneário, onde já não se tomava banho de lagoa. A lagoa tinha-se posto turva como um coração humano. Dizia-se que estava agora recuperada. Mas a lagoa enfrentava descrenças. Pureza será mesmo coisa que se recupere?

Pouquíssimos carros levantavam poeira nas ruas de terra batida. Passavam lentos como a querer surpreender algum vivente que lhes sinalizasse a rota de saída. As pedras dos calçamentos, pouco a pouco, acolchoavam-se pelo capim.

Eram grandes as casas. Insolitamente grandes e confortáveis. Construídas de bons materiais, com muitos quartos, varandas. Às vezes tinham bancos como os de praças à entrada. Tudo rigorosamente vazio, esperando. Como se os tempos dos veraneios fossem voltar, carregados de malas e risos de filhos pequenos.

Os muros baixos de portões aferrolhados, com os ferrolhos acometidos de artroses, juntas nodosas, atrofiados para o gesto de abrir.

As persianas cerradas. As casas já não espichavam olhos para a rua. As portas eram bocas emudecidas, pitando ausências.

As casas opunham como podiam resistência ao vento. O vento era mais temido que o tempo. O tempo passava em hordas de meses e saqueava as fachadas, pisoteava os gramados, decepava as flores.

Mas o vento forçava as portas, ameaçava as janelas, desmantelava as trancas. O vento assanhava as cortinas. Não se contentava com os quintais. Queria entrar, amarrotar as camas, verter a poeira de sobre a mobília, derrubar as taças, violar as fotografias. Queria expor as entranhas.

Vez por outra via-se uma casa com as vidraças estouradas, os móveis relinchando confusos, cavalos de estrebaria sem saber bem para onde. O vento açoitando-lhes o dorso. As quatro patas inertes. Os estofados umedecendo, aflitos, desbotando a estamparia de susto. Acabou-se o tempo da domesticidade! - decretava o vento às casas baldias.

A hera crescia sua barba extensa sobre a cidade mal dormida.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Onde Ser

Enquanto abria a cortina com gestos bem dispostos, dois curtos trancos de cada lado, separando as folhas do tecido, cantava.

O la-la-ra-iá era um sorriso de boca inteira e, quando tomava fôlego, aspirava um pouco da poeira transparente e rebrilhosa que se desprendera do pano sóbrio, espécie de pirlimpimpim da manhã já alvorecida mágica e promissora.

Tinha posto não seu melhor vestido, mas o mais gracioso, o mais leve, o mais alvo, o mais próximo da nudez. Era assim que se sentia: trajada de nudez esvoaçante. Mas não, não pretendia sair. Queria muito mais explorar a própria casa, para onde se mudara há poucas semanas.

Trazia os pés descalços, atentos ao relevo do piso frio, esquadrinhando alegres os rejuntes da cerâmica cor de marfim, qual focinho perdigueiro em canteiro novo.Era raro estar em casa naquela hora da manhã, em que o sol incidia em cheio em sua janela. 

Não se possui verdadeiramente uma casa enquanto não se lhe conhece todas as nuances da claridade: em que recantos se escondem os raios mais atrevidos, como as paredes se comportam ao pôr do sol, se enrubescem ao beijo de despedida.

Outro dia estivera nublado. A casa era um navio na névoa e o mais indicado seria atravessá-la com um lampião levado à altura dos olhos. Um silêêêêncio... Oh, sim, a casa requeria travessias. E sabia entoar silêncios. Era, como diria sua avó, dessas que têm "lá dentro". A sala e os quartos separados por um corredor, em que a luz de uma extremidade esmorecia antes de chegar ao outro lado. Cruzá-lo era confiar no convite ofuscante do cômodo seguinte. Era, portanto, empreender minúsculos nascimentos e dar-se renovadamente à luz. 

Achava que todas essas informações relevantíssimas deveriam constar dos classificados. Não bastava o enxuto rol do número de peças, a metragem total, se tem garagem na escritura ou não. Mais do que isso, lhe interessarava sempre a dimensão da luz, a proporção que esta ocupava no ambiente.

Tinha um amigo com ótimo senso de orientação, que alugara um apartamento no Humaitá exclusivamente pela lua cheia que lhe pratearia o estar. Ficava à noite, milagrado, observando a tatugem enluarada do rendilhado dos cobogós varando a sala. Sua irmã, Ana, também decidiu-se por morar num loft, cuja ausência de paredes facilitava a mais ampla circulação da luz. Então porque ela não compraria uma casa por sua possibilidade de...de amarelo, como explicar? 

Era um condicionamento antigo, adquirido dos álbuns de figurinha da infância: as que tinham contorno dourado eram, de alguma forma, especiais. Parecia-lhe que a lembrança, assim como as figurinhas, contornava as memórias prediletas com um marcador reluzente, ao que convencionou chamar,de si para si, do fenômeno das memórias amarelas. Sendo a sensação amarela o sinônimo cromático do que lhe deixava feliz.

Mas, claro, não foi só por isso que se decidiu por aquela casa, dentre todas as outras. A casa não escolhe menos o morador do que este à casa. Há entre a propriedade e o pertencimento um enigma de Colombo: o que vem primeiro? E mesmo as duas palavras se irmanam, siamesamente plurívocas. Apropriamo-nos do que nos é próprio (natural)? Pertence-nos a casa ou lhe pertencemos nós?

Lembra-se ainda de quando o corretor abriu a porta, para lhe apresentar a casa. As lembranças do que nem vivera correram a saudar-lhe à entrada, dóceis como os cães ao dono que regressa. Viu seus filhos dispararem pelo corredor, chamando em eco: vem ver, mãe! Os filhos que ainda não tinha. Pediam-lhe a casa. O ninho. Desde então sua esperançosa doçura aconchegava o ventre sobre os vãos da casa, alcochoados de fiapos de sonhos trazidos ao bico pelo caminho. Emprestava às entranhas da casa o calor das próprias entranhas. Amalgamava-se à casa. A casa própria. Casa propícia. 

De pé, sobre sólidas fundações, era uma mulher contente, chocando.