Sábado, Porto Alegre. Almoço em restaurante de shopping. Uma e meia da tarde. Primeiro andar lotado. A alternativa era encarar o lance de escadas, que prometia vista para o Guaíba.
Por toda parte, famílias, alguns casais. Ninguém almoçando sozinho. Como, aliás, deveria ser. Era um restaurante de estilo americano, desses que o garçom se apresenta pelo nome. Que será responsável por cuidar de nós. Gosto que cuidem de mim e me recosto, mais segura e relaxada, no espaldar da cadeira.
Ali, nada faltava. Uma economia de sobras. A bebida se renovava no copo antes de se estabelecer a sede. Nem precisava pedir. Tudo orquestrado para satisfações, de modo a dispensar os clientes do raciocínio da necessidade.
Na nossa mesa, éramos os filhos a dar conselho aos pais. O mato cresceu sobre seus atalhos. Eu dizia algo sobre as estruturas deverem servir ao sentido e não o sentido às estruturas. Em torno de nós, os assuntos eram diversos. Coisas do dia. Impressões sobre a moda. Referências desanimadas ao cinza do tempo. As vozes eram o enxame de sempre, alternando risadas, “fala, querido!”s ao celular, gírias locais.
Uma voz de mulher soou alto. Vai ver arregimentava um coro de parabéns para o aniversariante do dia. Mas bem que parecia um grito. E sem o concurso alegre das palmas festivas.
Seguiu-se um novo quase grito. E depois, inequívoco, um grito de socorro. Os cascos das cadeiras repisaram assustadiços o chão. Uma algazarra de talheres abandonados às pressas sobre a louça e um gemido entrecortado de criança.
─ Pelo amor de Deus! Ele está passando mal!
O homem caiu sobre a mesa, levando o tampo de arrasto, numa incongruência de cacos e cubos de gelo. Os que estávamos presentes permanecemos petrificados em nossas marcas, em desconfortável figuração.
─ Alguém chame um médico! Tem algum médico aqui? ─ desesperava-se a mulher.
A súplica se espalhava em rápido boca a boca. Uma seita inaugurada à falta de Deus. Até que, após repetir a invocação três ou quatro vezes, uma senhora se deu conta de que era médica ela mesma. Só agora o chamado percorrera os longos corredores do sentido, esse hospital vazio. A postura tentando inspirar a confiança de um jaleco, checava o pulso, a carótida, perguntava à que parecia ser a esposa como era o nome dele. Como é o nome dele? Como é o nome dele? Embora soubesse o nome de cor, a mulher parecia tentar decifrá-lo, aterrorizada, da inscrição de uma lápide. O homem não respirava.
Alguém se lembrou de levar a menina esperneante para a varanda, para poupá-la da cena. O que a mergulhou num angustiante cinema mudo. Via o pai inerte através da vidraça. Via a mãe agarrar pelo braço os que, a esta altura, tinham se acercado:
─ Meu marido está morto? Meu marido morreu?
Da varanda a menina lia os lábios da mãe sem detectar o sinal de interrogação e berrava bestializada contra o absurdo.
Ofereceram à menina água com açúcar. Uma mão desconhecida lhe afagava os cabelos. A menina cuspiu a mentira açucarada: “Está tudo bem”. Não era suficientemente pequena para acreditar. O pai não se movia. Uma fotografia feia, de olhos revirados. O branco dos olhos contrastando contra o rosto arroxeado.
Se não chorávamos todos de impotência e susto e horror era pela obrigação moral de fingir algum controle diante da menininha e sua dor descontrolada.
─ Ele ainda tem pulso!
Como se a afirmação afrouxasse o laço da morte, o próprio homem se contorceu de repente, puxando o ar num engasgo. Parecia tentar sentar-se a qualquer custo, arrancando o tronco do chão com violência. Aos poucos, voltava a si. A médica e uns bombeiros que por ali chegaram tentavam subjugá-lo, pediam-lhe calma. Que tudo já estava bem. O homem tinha o olhar transtornado dos que se olharam nos olhos da morte e viram o próprio reflexo sumir nas cavidades ocas. Levaram-no dali em cadeira de rodas. Sua mulher só então chorava francamente.
As pessoas, cabisbaixas, voltavam às suas mesas. Inseguras. Humilhadas. O vento gelado varava o salão e tremíamos de um outro frio, olhando atônitos os restos do almoço. Todos tínhamos ao prato o rato morto de Clarice Lispector. Sua verdade indigesta. O asco da precariedade estava servido.
A carne que ali se comesse seria um ato de canibalismo. Tudo era cru e extremamente perecível. Como nós. Que nos julgávamos seguros, cotidianos.
A realidade debochava de nós. Ouvíamos, sem ousar nos virar, sua risada de hiena em nosso encalço.
O garçom nos trouxe a conta, embrulhada num sorriso empalhado. Pagamos, mudos de medo. Porque, mesmo assim, o Cobrador virá bater à nossa porta. A qualquer momento.
E fomos depressa engolir o choro, um pingado e dois espressos num outro quiosque barulhento da praça de alimentação.