segunda-feira, 6 de junho de 2011

A Coluna de Sustentação

Para Eloise Porto,
organizadora do blog coletivo TremaLiteratura

     O que é uma casa? Uma casa é quem. Não é menos os hábitos que a habitação. É o que ensina a presença de cinzeiros ou os tapetes que forram a soleira da porta, qual encardidos aventais de sapatos.

     Aqui no Rio, não se costuma franquear acesso às casas, como não se franqueiam aos corações. A intimidade é quase um tabu. A rua assegura anonimato, rota de fuga do outro. Por isso o convite à noite e aos trópicos de sob o resguardo de um teto, constelou-me de esperanças. Desembrulhei a referência empoeirada de dentro do matulão de lembranças: em casa, encontram-se irmãos.

     Elis e eu mal controlávamos nosso feliz alvoroço, como crianças de orfanato em dia de visitação. Ai, essa eterna ânsia por afeto novo. Mas não os de artifício. Dos feitos de laço vermelho, indesatável.

     Ainda na portaria, aguardávamos as instruções do funcionário do prédio.

     — Para qual apartamento?
     — 201.
     — O elevador à esquerda, por favor. Ah, se vão para o 201, apertem o 3.

     Entreolhamo-nos, porque a noite, decididamente, prometia a travessia do mistério. A casa era Porto. Subimos, sem fazer perguntas, pois fazia já algum tempo que sabíamos do encanto peculiar das coisas incompreensíveis.

     No mais, não trazíamos escudos, de vez que não foram anunciadas armas. Ao contrário, a própria casa escancarava-se indefesa, em sua atitude de braços abertos. Não era preciso ser esperado à porta. Bastava-se adentrar a sala com o passo decidido dos que pertencem e recitar o prenome para quem aparecesse, para então conferir a contra-senha dos abraços.

     A sala avarandada guardava discreta teatralidade de recepção, queria-se palco de encontros. Não que houvesse pose nos livros, intencionalidade nas capas à mostra. Na casa, tudo estava à mostra, como um coração indiviso. Seu mais luxuoso adorno eram os olhos da anfitriã, duas contas claras, no passes-partout do delineador.

     Não há confirmações quanto a se era mesmo wicka ou apenas capaz de feitiços a pequena hostess. Somente em sua presença se descobria que toda foto sua, mesmo que 3x4, guardava-a em tamanho real. Os cabelos eram dotados de uma qualquer força sansônica, sendo esta a razão pela qual os trazia presos, como a cães ou maneiras ferozes. Às vezes se soltavam e passavam rente aos convidados, sem ladrar, o que apenas intensificava a sensação de perigo e o fascínio correspondente.

     Ali soubemos que, independentemente e para além de qualquer coisa, ela era a guardiã dos sinais vitais do grupo. E não era fácil tarefa a de controlar a ingestão pontual dos antibióticos, muito menos a excreção dos textos. Elô era a forma oxítona do elo.

     Por ser inegociavelmente lírica, modulava a alma em soprano, atingindo agudos inimagináveis, com cujas pontas, de vez em quando, a si mesma feria. Mas não escondia os pulsos. Antes, ostentava o bracelete delicado das cicatrizes, como a cozinha de paredes descascadas, onde era bom estar, próximo ao calor que irradiava do fogão dócil, a tantos quantos nele quisessem afagar a incandescência da barriga, exalando a pizza, que se anunciava pronta para as tardias fomes.

     Tampouco saberia dizer se era efetivamente acolchoado, se tinha essa textura de colo ou de matelassê que lhe atribuo, mas lembro do chão ser convidativo ao círculo, como se uma fogueira contadora de histórias fosse se plasmar a qualquer momento, reconstituída em sua natureza ígnea pela engenharia reversa da fumaça mentolada dos cigarros.

     E porque tudo dispensasse apresentações ou prefácios, os causos entrelaçavam as miçangas dos meios num longo colar sem fim.

     Se a casa era mesmo Porto, era cais só de chegadas, de onde não se era possível partir. Nem mesmo quando fomos embora, Elis e eu. Algo da casa se estendia no passeio, na cidade, entre as pontas do sorriso.

     Acabava-se a noite e não se acabava a sensação imemorial do encontro.