domingo, 27 de fevereiro de 2011

Impietá

Pelo que há de Divinópolis em cada uma de nós, mulheres de Adélia

Não fosse suficientemente melancólico aquele jantar, sem que se trocasse palavra, ouvindo o ranger dos maxilares, o trabalho dos dentes sobre a carne fibrosa, a saliva umedecendo a parte já triturada do alimento, foram caminhar na praça, aonde se prometia música ao vivo. Para quê, Senhor, insistir nesse simulacro de passeio, quando as mãos dadas não entrelaçam as intenções do que se pretende da noite?
Cidades pequenas sufocam-na, como se tivesse na garganta a esganadura suplicante dos dedos que se afogam em seus limites. Olham-na como se gritassem “tirem-me daqui!”, acusando-a de ter outra vida, outro endereço em que sentir-se sozinho faz mais ruído.
Todo forasteiro é uma mensagem ao mesmo tempo incômoda e instigante de que, sim, há outras possibilidades de estar no mundo. Sabe do fascínio e do rancor com que lhe olham. Assim como ela olha a cidadezinha diminutivamente, amplificando-lhe os aspectos grotescos sob a lupa do tédio.
Meu Deus, por que a praça está tão deserta se é dia de música ao vivo nela? Mais pobre do que não haver entretenimento é não haver público, concluiu, judiciosa. Então, tinha-se o palco no átrio principal, a dar para um semicírculo de cadeiras ocupadas em dois terços de sua capacidade. Mais atrás, algumas poucas pessoas em pé, sem coragem de comprometer-se o bastante para aderir à audiência.
Não fosse suficientemente melancólico aquele rock sem coro nos refrões, sem aplauso no final.  Oasis, Pink Floyd, The Smiths, R.E.M. As canções se iam calando, uma a uma. Ai, Senhor, por que é que eles insistem em cantar esse desabafo em inglês sob a ferrugem do cruzeiro do sul? Houve movimento nas cadeiras, procurando aliviar o incômodo das posições.
“Oh life is bigger”.
Um homem abriu os braços, pateticamente, como se não fosse suficientemente claro que a vida era maior, tão maior.
Não fosse suficientemente esmagador o gesto do homem, o verso da música, as bocas sem eco da platéia, havia aquele plangente futebol de restos. Ô, Senhor, por que têm sempre esse precoce sobrepeso as menininhas que brincam com os retardadinhos nas cidadezinhas?  Por que essa solidariedade dolorosa e comovente entre os que se sabem verdadeiramente excluídos?  
O rapazinho deficiente concentrava todo seu esforço em acertar o chute na garrafa vazia, mal importando a direção. Seu sorriso era límpido (a baba emprestava-lhe brilho). Sua euforia real. O rapazinho comemorava cada chute com um abraço de campeão pacientemente suportado pela meninazinha, de onde ela provavelmente recolhia o sobrepeso da lição de perceber que o amor transcende porque não cura misérias.
Indecisa entre sentir angústia, asco, ternura ou pena, sorveu a mistura, fazendo careta para a acidez adstringente da lucidez em que os elementos da noite vinham servidos.
— Da próxima vez, peço com vodka.
Aplaudiu sozinha o final da música, o final da noite, o juízo final.
Só não murmurou "ai, Senhor, tende piedade de mim", por que ela mesma não era capaz de perdoar.