sexta-feira, 15 de outubro de 2010

PalavrAbraço de Desconsolar Amigo

Amiga querida,

Eu nunca tive bichos. Fora pintinhos coloridos de feira de cidadezinha de interior e os coelhinhos de que lhe falei mais cedo. Ainda assim, o exercício era, na época, mais de ter do que de amar. E mesmo os coelhos, que ficaram tão pouco tempo lá em casa, não eram bichos de se misturar com filhotes de outra espécie. Eram, na verdade, pouco mais interativos do que bichinhos de pelúcia e era pena, porque o instinto que lhes animava era, ao contrário do que eu acalentava, o de fugirem de mim. Por isso, eu gostava deles um bocado amuada, sabendo-me não correspondida. Nunca se aproximaram de minha mão que não fosse pelo artifício de um petisco. 

Era assim: eu amava sua decorativa fofurice e eles o milagre de comer com fartura, sem nem precisar fazer esforço. Gosto de pensar que, para eles, eu era uma espécie de prodigiosa providência. E eles? Ah, eles eram meus. 

Era novo isso de possuir coisa viva. Envolvia responsabilidades: proteger, alimentar, limpar. E eu? Eu gostava de cuidar deles, de ser responsável por eles. 

Quando tiveram febre (e eu não sabia que bicho também tinha febre), lembro que me senti impotente, vendo as patinhas sem força, os bichinhos num canto, encolhidos. Peguei-os nas mãos, um em cada, senti que tremiam e que nem se defendiam de mim. Quase gostei de vê-los indefesos. Mas a criança em mim era mais generosa e desentendia tudo que não fosse saúde. Levei-os para a minha mãe, vexada, ansiosa. Deitei-lhe os coelhinhos no colo, para que ela tratasse de curá-los. Ninguém como ela para  amansar uma febre. Pedi-lhe, de fato, nada mais, nada menos que a cura. E imediata, que era a medida de tempo que eu entendia. 

Não sei dizer do amor que senti por ver minha mãe ali, concentrada, verdadeiramente imbuída da tarefa de curar dois coelhos e uma aflição de filho, umedecendo a ponta dos dedos num pires d'água e molhando, com leves toques, a boquinha deles. 

Pouco a pouco as linguinhas rosadas ganhavam agilidade e lambiam com vigor as gotículas que pendiam do indicador de minha mãe. E eu sabia que ficariam bem, porque estar vivo era ter sede e gana de empenhar toda energia no movimento pelo que falta. 

Esqueci rápido o susto, confiante, como toda criança, no presente em que vivia. De modo que, no dia em que cheguei em casa e vi no quintal a gaiola vazia, o gramado vazio, o quartinho vazio, fui pedir satisfações de onde estavam os coelhos. Nem por um momento, me ocorreu que não estavam. Morrer era isso? Perder do alcance do toque? Muito tempo depois, quando morreu meu avô, entendi que era pior: era perder ao alcance da troca.   

Seu caso é, em tudo, diferente do meu. Você sendo crescida e tendo modos de mãe, desejo de mãe. Sua Flor, que isso é bem nome de cachorro seu, um comovente filhote sem modos. Exigia atenção, reprimendas e, sobretudo, carinho com olhos que eram duas compridas pontes entre o ser gente e o ser cão.    

Não sei como será isso de perder o toque e a troca no mesmo bicho, que não seja humano. Nunca tive cachorro ou outro animal a que pudesse chamar efetivamente de estimação. Nunca tive a riqueza de conhecer o íntimo do que não me é organicamente  semelhante. Mas uma coisa intuo, sem saber bem do que falo, é que pouco haverá de importar a natureza do amor ou a espécie do que se ama. Maldita é toda perda do que se ama. Requer o processo laborioso do luto sobre a ausência. Sobre o silêncio. Sobre o vazio. Digestão ao contrário que faz assimilar não a substância, mas a falta dela. Roer do outro a desintegração da carne, o colapso do substantivo. Nenhuma mão que se estenda para um afago deveria ficar sem a resposta táctil de uma pele, um pelo ou uma lambida. 

Não se apresse em dizer que está bem. Se a minha criança puder falar com a sua ,dirá que foi preciso registrar algumas palavras no esforço de compreender. Saiu-me, na época, um necrológio enxuto, quase jornalístico. E, como as palavras falharam ao drama, foi preciso, ainda, fazer um desenho, com cores de lápis, cores que eu não tinha pra dar. Duas cruzes, dois coelhos com asas num jardim vastíssimo sob um sol sem rosto. A partir dali, o sol não sorria mais em minhas composições. A seu custo, eu entendia. A natureza é neutra. O sol não sorri nem chora. A noite não é necessariamente uma desproteção, posto que pode igualmente abrigar e esconder. E as coisas grandes, as coisas dolorosas acontecem também de manhã, à luz do dia.