domingo, 11 de dezembro de 2011

As Quinas do Advento

   Era um mundo tão real, que a única matéria de sonho eram as pipas conquistadoras de azul, educando os olhos para o alto.  
      O virtual, se existia, não habitava a dimensão delicada do invisível, mas o oco categórico de uma falta. Assim, tudo era também virtual, a começar pela comida no pilão ocioso dos molares. E, no entanto, abundantes, todos eles. Ricos de carinho, de esperanças, de entrega. Doadores universais de beijos, compatíveis com as partes que alcançavam, enlaçadores de joelhos e, se nas pontas dos pés, de cinturas. Um adulto não é senão uma vasta extensão de colo. 
    O próximo estava tão próximo que era possível afagar-lhe os cabelos, dedicar-lhe a atenção dos olhos, conhecê-lo pelo nome e pelo andar.
     — Tia, quando eu crescer, eu quero ser bombeiro! 
     — E eu quero ser um carro. 
    — Um carro? Mas a gente não pode ser uma coisa, meu amor. A gente cresce para ser...pessoa - respondi, atordoada.
   Uma outra menininha, que a tudo ouvia com atenção, disse: "Então eu quero ser a Barbie".
    A Barbie, se não era pessoa, personificava todo o rosa do mundo, a beleza admitida. Os cabelos louros, a pele branca. E era como dizer, de dentro da pele retinta: quando eu crescer, eu quero ser outra. 
     Quem foi que excluíu a menina da vitrine do próprio desejo? 
     Outro eu quisera o mundo para que lhe comportasse. 
      — Tia, se a terra é mesmo redonda, como é que se vive à margem? Margem não é coisa de quina?
      —  ... ... ...
      Voltei mais só de não ter filhos. E mais irmã de meus irmãos.

domingo, 27 de novembro de 2011

Rabiscos de Ponteiro

      Encerrava-se novembro sem registros. Os dias caindo amarrotados do calendário, empilhados na desordem. “Tanto a fazer. Tanto a fazer. Tanto a fazer” — soava o cuco intermitente, saindo, entrando e saindo de novo como a certificar-se de que não esquecera de transmitir o recado. Era preciso reformar a casa, empreender a reforma íntima, mudar de trabalho, decorar o script antes da estréia do papel de mãe, esquecer do self, deixar o centro, assinar o cartão de ponto, substituir o raciocínio do prazer pelo da utilidade, ser o dever, ser dever ser dever ser. A hiperatividade é em mim o coma do pensamento.

         Foi quando recebi uma mensagem de eletrochoque sobre o desanimado coração. Dei as costas para a luz e fui retornando à realidade escura de existir no corpo e, ao abrir os olhos, dei com os da moça e de seu grilo falante, as máscaras ainda postas, toucas brancas sobre os coques de antenas e cabelos. Cada vez mais nítido, um som ritmado de frequencímetro, indicando vida. Houve um ligeiro debate metafísico entre os presentes a respeito de se "vida" seria efetivamente um sinal de melhora.

       Ao que parece, peguei uma conversa já na metade sobre misericórdia e perdões. Devo ter passado mesmo muito tempo longe, deduzi, para não entender bem, não a mensagem, mas seu contexto. Falavam entre si? Falavam para mim?

         Por via das dúvidas e porque logo se via tratarem-se de autoridades em infortúnios ocultos e bloqueios criativos, comecei a listar mentalmente o rol de coisas passíveis de perdão, se era o perdão um meio para a minha cura. E só então soube, conscientemente, de que precisava aprender a perdoar o tempo. Me curar do tempo. O tempo: onde eu nunca coube. Ou sobrei ou me faltava. Ou a precocidade ou o interdito. Vagarosa na melancolia, quando o dia era de festa; precipitada no abraço, quando o dia era de não. E chegar antes era tão intempestivo quanto chegar depois.

         É preciso mais. É preciso, talvez, amar o tempo.

        Não sei reger o tempo, nem tenho suficiente humildade para por ele me deixar reger. Tenho mesmo um certo rancor de marujo ao bater continência ao capitão reluzente por trás do manche dos ponteiros. Por não saber levá-lo é que, de vez em quando, tudo me cobra e eu devo, em iguais proporções, ao Senhor do Ser e ao do Fazer. O tempo encurta nos bolsos, não tenho como saldar as dívidas. Afianço certezas sem lastro. Falho com tudo e ao mesmo tempo (ele de novo).

       Pensando bem, que grande poder adviria disso de perdoar o tempo. Estabeleço com isso a medida de sua reciprocidade, segundo a fórmula: "assim como nós perdoamos aos nossos devedores". Meu desperdício por sua escassez.

        Ficamos quites, o tempo e eu. Eu frente a frente com seu estranho espelho, com que me reflete e transforma. O tempo, às vezes, também me sorri. Galante, sussurra-me que eu confie. Faz juras de sempre e nunca, pactos de agora em diante, medidas de não passar. Diz que quer envelhecer comigo. Diz mais bonito: que quer envelhecer em mim. Caio de novo na sua lábia. Aceito o tempo. Pede, masculino, que eu cuide bem do que faço dele. E promete, provedor, que se encarregará de tudo quanto fará de mim. 

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

O ENCAIXE DA ESTRELA

O aprendizado das formas é talvez um dos mais fundamentais em nosso humano repertório de conhecimentos. Toda vez que tento adivinhar pelo tato as chaves da casa na desordem da bolsa, acesso inconscientemente o brinquedo de poliedros coloridos da infância. Havia que se encaixar a estrela na ausência da estrela, donde mais tarde concluí que nenhuma forma se prestava a preencher o vazio da outra.
O avô foi das primeiras formas de encaixe que aprendi. A barriga redonda provia colo ergonômico, aliciador ao sono, embora sobrasse sempre pouco tempo para demoras de contato, a casa sempre tumultuada de gente. Dera nisso a difusão de suas quinze sementes: uma safra abarrotada de risadas de netos.
Na casa do avô todos os cômodos eram permitidos, salas-de-ser e de estar. Como desconfio que era a própria alma descompartimentada do patriarca. Mais do que um homem do campo, o avô era campo.
À falta de braços para abraçar toda a gente, o avô engendrou a invenção do olhar, que dizia coisas nítidas como palavras. A ele, portanto, devo também a primeira vivência dessa experiência fundamental nas interações de afeto: a cumplicidade. Que é a linguagem do invisível dentro do discurso do óbvio. A criptografia do encanto. Quando nos cutucava a moleira com a britadeira dos dedos, os olhos sorriam-lhe delatores da mão agilmente afastada. Sempre queria ser "pego" o avô, facilitava os flagrantes. E seu mistério nem por isso se desfazia.
Outro tesouro que guardo dele foi quando se recusou a ouvir a canção da Tapuia na versão esganiçada das netas, que lhe prestavam – riqueza nossa! – companhia no dia da cirurgia da avó. “Ah, essa música não... Essa só presta na voz da Maria”. E assim revelava-nos o grande truque da longevidade de seu casamento de ouro: cultivar as pequenas ternuras, como uma falta doce dentro do ter, que nos belisca da comovente impermanência do outro e de seu brilho. A partir dali eu desconfiava que, reversamente, o amor morria de inanição quando se perdia a capacidade de se enternecer.
O avô partiu pródigo de doçuras. Sim, o avô era também um gosto e um tempero. De modo que a saudade dele ainda hoje se faz em mim como uma espécie úmida de meio-sorriso sob o leque dos cílios. É minha contra-senha secreta ao aceno de sua memória. Dentro de mim, na desordem de mim, reconheço ainda as chaves dos saberes que me legou. Abrem-me portas por dentro. Permitem-me avançar no caminho.
Hoje eu conto o avô para revivê-lo. Por não saber amá-lo sem entrega, o que vem a ser modelo seu. Essas palavras são a minha colheita desmedida de pimentas.      

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

MAGNIFICAT

"Exaltou os humildes, encheu de bens os famintos
Aos ricos despediu de mãos vazias”

Ou
O Homem de Estimação
                 
Dir-se-ia do animal que era de boa raça. A cabeça altiva de um pointer inglês, predominantemente preto ou acinzentado contra um fundo mais claro, por efeito do pontilhismo das manchas sobre o tapete do pêlo. Em pé, ele mesmo monumental, alheio à fachada do Teatro recém reformado, na Cinelândia. Via-se-lhe livre, pela ausência de coleiras. E era dos poucos livres àquela hora, em que escorriam os engravatados pelos ralos do metrô.  

Seria de rua? Ah, quase não se fazem mais cães de rua. Não nas metrópoles. Não na Rio Branco, a atravessar a pista sobre o riscado da faixa, a fazer falta a cachorrada vadia das ruazinhas de qualquer infância, os que corriam atrás dos carros e farejavam os dedos cautelosos como possibilidades (remotas) de afago nos passantes.    

Era impossível que um animal tão bonito existisse em plena cidade, sem curadoria certa. Porque ao belo, apropria-se-lhe sempre, por ser a beleza, assim, toda gratuita e sem propósito, coisa de estalar no peito, insuportável.  

Era então que se enxergava o homem, quase um rascunho descolorido contra as luzes da praça. Sujo. Pobre. De rua. Vinha o homem orgulhoso a dar ordens ao cachorro, crescido de autoridade. Que o esperasse ali, que ele voltava já. O cão seguia-o atento, familiar. Adestrado aos passos daquele a quem se acostumara a pertencer. E porque sabia suas deixas na costumeira cena, sentava-se por segundos sobre as patas traseiras, a tempo apenas de o homem precisar falar ligeiramente mais alto, forçado a virar-se para trás. 

O cachorro era, pois, a visibilidade do homem, a restituição de suas cores. E por lhe andar parelho, única beleza de seus dias, sentia com enternecida vaidade que o cão é que o escolheu. Vivia em face do animal a opulência de conjugar um ter, a integração numa ordem nova, em que os outros é que eram à margem. À margem de não terem o cão. 

Todo seu gestual excessivo, sua pantomima de afeto era para dizer ao espelho trincado dos olhos dos outros que “esse cão é meu porque me segue e me guarda”, surpreso de ter valor, de ser coisa que se guarde e defenda por caninas lealdades e dentes. 

O cachorro era-lhe a casa, em que viver sem receios, sem-teto a salvo do mundo pelo Papaiz de um rosnado. 

O cão dava ao homem a importância de um aposto, complexidade e nuances, sentimentos deveras delicados. Como essa vontade de lágrimas que era também uma alegria, essa certeza aflita, quase só uma impressão meio a medo, de que ele estava também, como todo ser que é eleito, destinado a viver grandes coisas.   

sábado, 27 de agosto de 2011

In: Cognitum

    O dia começara denso de símbolos e levemente espiralado. A tendência do movimento era para dentro. Não necessariamente para baixo, mas para dentro. Era sempre com vago estranhamento que se flagrava pensando, a coisa em pleno gerúndio, acontecendo.
Ainda se lembrava da primeira vez. Devia ter uns quatro anos, sentada no banco de trás do carro, espremida entre os irmãos e ainda meio sonolenta, para cumprir o ritual da praia domingueira. "Mesmo que pareça que todos não gostam de praia". Olhou em volta, assustada. Quem disse isso? E a voz se destacava sobre todas as outras, agora nitidamente inquirindo: quem disse isso?
Os irmãos cantarolavam as conhecidas músicas de encurtar caminho. Os pais conversavam afazeres. E a voz era, definitivamente, a sua, a despeito do silêncio estatelado dos lábios. Só depois soube como aquilo oficialmente se chamava, a voz de dentro da cabeça.
De primeiro, pensava baixinho, com medo de que os outros ouvissem. Então observou que podia pensar com estrondo e sobre as próprias pessoas presentes, sem que ninguém desse por isso. Era fantástico existir com tanta privacidade! Embora mais tarde viesse a lamentar o monólogo: uma pena que nunca ouvissem, sobretudo quando se tratava de pedido de socorro.
Desde então, tornou-se seu maior passatempo: observar a voz, experimentar direcioná-la e, oh, não era fácil, não era mesmo tão trivial. Não sabia, por exemplo, se a voz desaparecia ou se era um falar contínuo e ela é que nem sempre escutava. Como também não lhe era claro, se a voz era dela ou, assim mais sutil, se a voz era ela. Como se pensar lhe antecedesse mais do que lhe consistisse. Inexistira no quando não pensara? Ou melhor, no enquanto não dera por si mesma, pensando?
Certo era somente que, sempre que se fixava, a voz estava dizendo alguma coisa. Pegava os assuntos do meio. Mas também podia propor novos tópicos e a voz, simplesmente, discorria. Discorria espertamente sobre tudo, como o índice de uma inesgotável enciclopédia. E aquilo de que não sabia, a voz inventava.
De forma que ser era aos sustos. Alumbramentos. Lampejos. E, então, revelava-se-lhe a marca d'água do encanto na contraluz do espouco. Havia que decorar as formas em sua nitidez de relâmpago, antes que lhe girasse o farol. Diziam-lhe lúcida, porque sabia recitar a luz de dentro do escuro. Cegos todos. Ela, inclusive.
Fosse como fosse, por mais que se dedicasse, nunca conseguia pensar todo o tempo. Ou saber o tempo todo sobre o que pensava. Isso aprendera a custo: mesmo a consciência não era uma forma maciça de pensar. Havia descosturas, descontinuidades, intervalos.
Fora a contaminação de sentir. Aliás, havia uma interessantíssima interação entre pensar e os sentidos, o muito que se influenciavam mutuamente. Pensar tanto aguçava-os, como os suspendia. Basta dizer que tanto podia se dar de pensar ser olhar sem ver, como de o tino concluir pelos olhos. 
Como no dia em que, supondo-se concentrada sobre os gráficos do quadro-negro, reparou na imagem que lhe propunha a janela: um cadarço encardido, que fazia pender do alto do poste uma botina, a balançar a sola grossa sobre o despropósito de não haver chão. Resultado era quase sempre perder as explicações e ganhar a dimensão do enigma. 

sábado, 30 de julho de 2011

A Arquitetura do Interdito

Porque uma paixão extemporânea, se declarada, 
faz nascer dois sitiados em lados avessos de um mesmo muro.
       
       Era um portão de abertura a exigir força descomunal e dolorosa. Alto. Austero. De bronze maciço. Pesado, portanto, como uma tristeza maciça. Que também é uma proibição de passagem.
       As duas folhas perfeitamente complementares, jungidas numa aliança de ferrolhos. Bem no centro, pendia da boca ameaçadora de uma cabeça de leão a alça convidativa da aldrava. 
         Por muito que percorresse a amplitude do jardim que o circundava a quase perder de vista, ele chegava sempre àquela inevitável demarcação de um limite. 
        Para além era o interdito. O haver muro não o intrigava tanto como o haver portão. Porque o muro era o imponderável, em sua irrecusável natureza de realidade posta. Mas o portão era caminho ainda. Bastava, para isso, mover-se-lhe as dobradiças, divorciar as folhas perfeitamente complementares, instaurar a fresta por onde escapulir-se o corpo para dentro de um novo todo, aparentemente ilimitado, a que ouvira chamarem casa - a palavra misteriosa.  
       Jamais soubera como era estar dentro. Habitava as extensões do afora, herdadas ao pai, que eram da casa a imediata vizinhança.
       Não havia registros precisos de quem exatamente ordenara que primeiro se levantasse o muro, aonde mais tarde se veio a afixar o portão. Certo é apenas que muro e portão o precediam, como a profecia cíclica do impasse. Talvez os de casa temessem o dissoluto, tanto quanto os de fora temiam a clausura instável do teto para o céu que era seu. Não haver teto era jamais sofrer o risco de ruir. E, no entanto, a aldrava era a despropositada possibilidade de chamado entre os mundos-medos inconciliáveis.
        Muitas vezes ele fizera soar os golpes da aldrava, tremendo de antecipação e espera. Não sabia se lhe assustava mais a hipótese de se lhe abrirem os portões de par a par, a possibilidade de devassar a casa pelo meio; ou a de sequer registrar a aproximação ansiosa daquela que, junto ao portão, do outro lado, respirava. Coisa viva, matéria igual à sua. Saber dela, habitava-o, ao mesmo tempo que o tornava irremediavelmente sozinho. Soube-se pobre do que não tinha. O que lhe era familiar, agora desamparava-o. A amplitude se tornara apenas a métrica desoladora do vazio.
     De fato, nada lhe parecia mais seu do que o que estava guardado do outro lado. Guardado dele, portanto. Não haveria trespasse que não constituísse, forçosamente, uma transgressão.
     Por isso parecia-lhe que devia de novo correr na direção oposta ao portão e seu intransponível deboche de caminho feito para não se passar, apequená-lo pela distância, expulsá-lo dos olhos, à medida em que voltasse a se embrenhar em seu paraíso de exterioridades e jardins. E com isso adiaria, uma vez mais, o reencontro da casa, em suas coordenadas imutáveis: naquela longitude exata em que se desencontravam os tempos.

domingo, 3 de julho de 2011

Germiniscências

Texto postado originalmente no blog Para eu Parar de me Doer

Saiu da loja de perfumes, aproximando suavemente o pulso do nariz, para sentir-lhe a fragrância. A mão pendia-lhe oblíqua, com as costas voltadas para fora, como na pausa coreográfica de uma bailarina, revestindo de elegância o distraído gesto. Sim, havia qualquer coisa nela que dançava! Seu caminhar tinha a leveza volante de um invisível voil, vinham e iam as ancas em balanço pendular, cadenciadas.

Seria a mulher a rosa que se cheira? - brincou-lhe o pensamento a propósito da estampa floral que vestia. Tudo nela exalava um aroma frutado de flor fecunda, doce, doce, olhos dulcíssimos, rebrilhando úmidos como o vértice de um hibisco. Apertou o ventre com as mãos em concha, como a proteger um enigma e atravessou a rua, o sinal ainda aberto aos carros, em atitude desafiadora, só para vê-los curvarem-se sob o comando de uma súbita frenagem à altivez da vida.

Gostou da idéia de que as coisas em volta dela, a partir de então, desacelerassem. Havia mesmo mais silêncio, como quando cai a neve e suprime-se o barulho dos passos.

Deixou-se tomar pela visão íntima de uma paisagem toda branca, a que associava, paradoxalmente, um calor de Glühwein, bebido em pequenos goles - o vinho que se serve quente e condimentado nas festividades teutônicas do Advento. E lá se se iam muitos anos desde que voltara de lá. 
 
A invocação inebriante do cheiro macerado de cravo, uva e anis, levou-a a fechar os olhos, inalando gulosamente o ar até o limite dos pulmões, retendo um pouco a respiração, como a perscrutar vestígios das notas exóticas do aroma dentro de si.

Levada pela correnteza das associações sinestésicas, sintetizava em sinapses rápidas experiências diversas, sensoriais ou não, se resultantes do intelecto.

E tinha ainda a sugestividade da palavra “Advento”, cujo conceito fulminara-lhe sob uma conotação inteiramente nova...

Os parênteses se abriam em sua mente com o poder de multiplicação de bonequinhas russas, as memórias saindo umas de dentro das outras, em uma infinita cadeia remissiva, um fio contínuo de histórias que era, no fim das contas, o que lhe arrematava a tessitura do ser.

Munia-se, inconscientemente, de referências, tantas quantas possíveis, sobre o processo de viver: suas sensações, suas razões, suas implicações, seu sentido.

Mais do que nunca precisava entrar em contato com a natureza das coisas, sistematizar o precário saber, como o pássaro laborioso a construir com fragmentos a dimensão imaterial do ninho, pois suspeitava estar incumbida de transmitir, mais do que a realidade do corpo ao que se lhe formava dentro, um modo de estar no mundo, de relacionar-se com ele.

...Os que julgam que a criação é forma apenas de forjar a criatura, desconhecem a carga transformadora do ato de criar, donde o próprio criador se origina. Origens...Origem. A palavra escancarou-se como a boca de uma baleia, tragando-a para dentro. 
 
A lucidez nela aguçou as retinas, tentando recuperar a nitidez dos contornos ao adentrar o escuro mistério.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

A Coluna de Sustentação

Para Eloise Porto,
organizadora do blog coletivo TremaLiteratura

     O que é uma casa? Uma casa é quem. Não é menos os hábitos que a habitação. É o que ensina a presença de cinzeiros ou os tapetes que forram a soleira da porta, qual encardidos aventais de sapatos.

     Aqui no Rio, não se costuma franquear acesso às casas, como não se franqueiam aos corações. A intimidade é quase um tabu. A rua assegura anonimato, rota de fuga do outro. Por isso o convite à noite e aos trópicos de sob o resguardo de um teto, constelou-me de esperanças. Desembrulhei a referência empoeirada de dentro do matulão de lembranças: em casa, encontram-se irmãos.

     Elis e eu mal controlávamos nosso feliz alvoroço, como crianças de orfanato em dia de visitação. Ai, essa eterna ânsia por afeto novo. Mas não os de artifício. Dos feitos de laço vermelho, indesatável.

     Ainda na portaria, aguardávamos as instruções do funcionário do prédio.

     — Para qual apartamento?
     — 201.
     — O elevador à esquerda, por favor. Ah, se vão para o 201, apertem o 3.

     Entreolhamo-nos, porque a noite, decididamente, prometia a travessia do mistério. A casa era Porto. Subimos, sem fazer perguntas, pois fazia já algum tempo que sabíamos do encanto peculiar das coisas incompreensíveis.

     No mais, não trazíamos escudos, de vez que não foram anunciadas armas. Ao contrário, a própria casa escancarava-se indefesa, em sua atitude de braços abertos. Não era preciso ser esperado à porta. Bastava-se adentrar a sala com o passo decidido dos que pertencem e recitar o prenome para quem aparecesse, para então conferir a contra-senha dos abraços.

     A sala avarandada guardava discreta teatralidade de recepção, queria-se palco de encontros. Não que houvesse pose nos livros, intencionalidade nas capas à mostra. Na casa, tudo estava à mostra, como um coração indiviso. Seu mais luxuoso adorno eram os olhos da anfitriã, duas contas claras, no passes-partout do delineador.

     Não há confirmações quanto a se era mesmo wicka ou apenas capaz de feitiços a pequena hostess. Somente em sua presença se descobria que toda foto sua, mesmo que 3x4, guardava-a em tamanho real. Os cabelos eram dotados de uma qualquer força sansônica, sendo esta a razão pela qual os trazia presos, como a cães ou maneiras ferozes. Às vezes se soltavam e passavam rente aos convidados, sem ladrar, o que apenas intensificava a sensação de perigo e o fascínio correspondente.

     Ali soubemos que, independentemente e para além de qualquer coisa, ela era a guardiã dos sinais vitais do grupo. E não era fácil tarefa a de controlar a ingestão pontual dos antibióticos, muito menos a excreção dos textos. Elô era a forma oxítona do elo.

     Por ser inegociavelmente lírica, modulava a alma em soprano, atingindo agudos inimagináveis, com cujas pontas, de vez em quando, a si mesma feria. Mas não escondia os pulsos. Antes, ostentava o bracelete delicado das cicatrizes, como a cozinha de paredes descascadas, onde era bom estar, próximo ao calor que irradiava do fogão dócil, a tantos quantos nele quisessem afagar a incandescência da barriga, exalando a pizza, que se anunciava pronta para as tardias fomes.

     Tampouco saberia dizer se era efetivamente acolchoado, se tinha essa textura de colo ou de matelassê que lhe atribuo, mas lembro do chão ser convidativo ao círculo, como se uma fogueira contadora de histórias fosse se plasmar a qualquer momento, reconstituída em sua natureza ígnea pela engenharia reversa da fumaça mentolada dos cigarros.

     E porque tudo dispensasse apresentações ou prefácios, os causos entrelaçavam as miçangas dos meios num longo colar sem fim.

     Se a casa era mesmo Porto, era cais só de chegadas, de onde não se era possível partir. Nem mesmo quando fomos embora, Elis e eu. Algo da casa se estendia no passeio, na cidade, entre as pontas do sorriso.

     Acabava-se a noite e não se acabava a sensação imemorial do encontro.






segunda-feira, 9 de maio de 2011

Carpinejando

Tudo que seduz, abduz, de alguma forma. Leva-nos ao porão da intimidade, para onde descemos de mãos dadas. Abduzem o olhar secreto sobre as reentrâncias do pensamento do outro; o interesse genuíno de legendar o cacoete dos lábios, ou o ritmo da respiração; a intenção de catalogar os sorrisos.

O Carpinejar não é um mestre da escrita. É um mestre do olhar. Ele convida ao ininterrupto voyeurismo sobre as reações do outro, despindo-o. Ele se propõe a pensar sobre cada detalhe, num trabalho minucioso de bordadeira. Tudo ganha o canutilho de seu interesse. A tudo empresta brilho, relevância. É a opulência do olhar.

Alenta saber que existe. A menos que ele seja a mais amoral ficção de si mesmo. Não que seja tudo verdade. No amor, nem é preciso. A verrossimilhança do cuidado já despressuriza a carência, impede sua inflamação de bolha.

Tudo bem, eu me identifico, admito. Para mim, a quem o mundo se dá a conhecer Desde os Olhos, sendo este o título que me encabeça a cognição da vida, minha maneira de entrar em contato. Mas não é uma paixão narcísica, nascida da visitação do espelho. É o encontro com uma profunda sensação de ordem, ao ver consubstanciado meu mais caro dever ser. Ele põe as palavras em ordem, o olhar em ordem, o amor em ordem. 

Eu me encanto e emociono com a ordem proposta por ele. Soa-me certo. Como deveria ser. Sim. Eu responderia sim, sem pestanejar, à possibilidade de uma vida vivida nesses termos. Eu mesma já fiz essa proposta. Mandei gravar no avesso da aliança.

Todo olhar amoroso é um pouco um olhar de mãe. Olhar de quem precisa construir a partir de sinais a linguagem do outro. É claro que se corre o risco de inventar o outro no processo. Mas o interesse em traduzi-lo deve manter-se fidedigno, insuscetível a desgastes.

Talvez, toda história de amor comece com essa pergunta implícita: posso ser seu intérprete? Fale comigo, fale através de mim. Escreva as minhas falas. Conduza-me. Sim, porque há a vaidade de ser inventado pelo outro também, de saber que o outro nos empresta toda a beleza do próprio olhar. É um convite para a nudez, em todas as suas formas.

Serás meu guia e eu tua intérprete. Uma mulher cega e um cão fiel.

Que me reinventes o gesto do olhar com as terminações dos pêlos. Que eu nos transcreva as falas, taquigráfica, enciclopédica. Mas nada disso pode durar se a ambos não tocar a curadoria das memórias, esta gravíssima incumbência. Desinteressar os olhos é desincumbir-se covardemente, sem apontar substitutos. Deixar ao outro a vacância do zelo, a opacidade empoeirada do beijo que não se usa mais. 

Requer mesmo trabalho árduo, de borralheiro. Amar é lustrar os trincos e atravessar o limiar do espelho.

terça-feira, 3 de maio de 2011

O Leitor

...porque quem lê, se apropria do que lê.

Tão misteriosos são os critérios da assim chamada “química”, a lógica aleatória do desejo. Este homem, que se orgulha de jamais haver engrossado as estatísticas dos contadores de acesso a sites pornográficos, com a roleta dos números escalonando como o orgasmo em falsete de uma má atriz, um homem, logo se vê, de boa educação, dos que ainda usam cavanhaque e modos britânicos. Mesmo a minuciosa auditoria de seu browser revelaria em sua lista de favoritos apenas links culturais, fóruns de discussão de cinema, preferencialmente o francês, e, quando muito, uns tantos blogs autorais de literatura que havia se habituado a seguir. Era o quanto concedia a estas modernidades esse homem clássico, amante do atemporal.

Até o dia em que entrou no blog dela.

Era uma aspirantezinha a escritora comum, isto é, seus textos não tinham nada demais. Vá lá que se notava uma atenção delicada na escolha das palavras, um respeito pelas regras do português. Acontece que, ao lê-la, sentia um estranho formigamento, um aguçamento não-habitual dos sentidos.

Não tinha a ver com os temas sobre os quais ela discorria, não era isso. Tampouco ela se utilizava do expediente amplamente difundido de associar fotos e imagens aos seus textos, que pudessem desencadear qualquer cobiça no olhar ou essa despropositada trepidação subterrânea do instinto.

Pensando bem, ela deveria ser uma mulher feita. Quer dizer, corrigiu-se ao pensar nela tão sem rodeios, como mulher. Ela deveria ser um adulto de, certamente, mais de 30 anos, o que serviria para explicar sua escolha estético-conceitual por uma utilização parcimoniosa de recursos de editoração da internet. Ou mais de quarenta, se fosse o caso de a dita sobriedade dos recursos indicar apenas pouca familiaridade com a tecnologia do blogger.

Da primeira vez, foi levado até ela, redirecionado pela lista de indicações de um blogueiro já conhecido, cujo gosto pareceu-lhe relativamente confiável. Ou muito se enganava ou já havia até lido um comentário dela em postagens anteriores de “Humano com H”, algo conciso, pretensamente filosófico, o que demonstrava alguma preocupação em parecer inteligente.

Teria sido esse caco de espelho em que se vira refletido? Fato é que ele percorreu, de início, diagonalmente, o texto dela e foi então que lhe ocorreu pela primeira vez o estapafúrdio fenômeno. Remexeu as pernas, sem entender como acionara o súbito caps.lock, o volume que crescia dentro da calça. Releu o trecho cuidadosamente, buscando indícios:

“(...) seguimos primitivos como as formigas: precisamos roçar as antenas com nossos semelhantes para estabelecer contato. E este sinal - o toque - quando se perde, amputa-nos da dimensão do outro que conosco formava o corpo coeso de um abraço (...)”

Levantou-se, perturbado. Não havia ali nada, absolutamente nada demais. Nada que explicasse esse estremecimento no cerne de sua virilidade. Muniu-se de café, prevendo que a madrugada se anunciava longa, exigindo-lhe explicações.

De um só fôlego, leu tudo dela. Como era desconcertantemente excitante formular a coisa assim: tudo dela.   Em cada post, tropeçava com os olhos em palavras-brechas, que insinuavam. Insinuavam o quê? Não era claro. Mas não é todo insinuar o contorno do impreciso? Nacos de nudez de uma Gestalt profundamente feminina, que se lhe oferecia em contraponto à aspereza de barba, sua interface de contato com o mundo.   

No outro dia, chegou ao trabalho com os olhos trincados de vigília. Nada daquilo fazia sentido. Essa mulher, de quem conhecia pouco mais do que o nome com que assinava uns escritos medíocres, tornados públicos. Que sequer lhe haviam sido endereçados, portanto. Embora lhe acertassem o alvo das pulsões com precisão de míssil.  

O café, talvez. O excesso de café é que o tornara suscetível. Essa queimação na boca do estômago, tão diferente de sua gastrite crônica, que sempre espumava no vencimento dos prazos. Era preciso observar melhor, investigar mais.

Na noite seguinte, bem alimentado, na companhia de uma taça de vinho branco, digitou na barra do browser, por extenso, o endereço da página dela. Num primeiro momento, pareceu-lhe totalmente inofensivo e mesmo perfeitamente assintomático o que veio a se revelar um de seus mais inexplicáveis fetiches: o de soletrar o seu acesso.

Havia postagem nova, o que, de certa forma, o desorganizava. A ele, que se programara mentalmente a simplesmente reler os trechos que havia sem querer memorizado, tão banais eram as palavras desta mulher, fáceis como refrões de pop-rock. Este convite ao novo desintegrava seu insubsistente corrimão de certezas, à medida que descia a escada em espiral do texto novo.

“Eu quero (...)” - escrevera a mulher.

O período se estendia para muito além do querer, mas o olho do homem continuava refém do que se descortinava por detrás da fechadura do verbo. Ela não havia escrito “queria”, como os que negociam prazeres. Disse, com voz de comando, com um desejo perigosamente assertivo: eu quero.

Não era possível que ela regesse assim suas fantasias, com uma única palavra. As mesmas palavras que ele ouvira, tantas vezes, em outros blogs, outros textos, outras bocas.  

Invadiu seu perfil com violência, em busca de vestígios, uma nota de perfume, um livro favorito, o elemento do seu signo, qualquer terra em que firmar os pés, qualquer coisa. O nome. Dela havia apenas o nome hermético. Nem mesmo a cidade, nenhuma foto, nada.

A pouco e pouco se reconhecia escravizado por essa inexplicável obsessão. Passava dias sem comer direito, a esperar o sinal de seu “feed”.

E se ela demorava a postar, perseguia seus comentários nos blogs afins. Às vezes parecia que ela escrevia de propósito, para afetá-lo ou para provocar-lhe coisas. Em todo caso, para lhe provocar. Ficou cego de ciúmes quando leu no texto de um autor moderninho, a quem ela já elogiara antes pelo que chamou de “humor masculino”, algo como ele lhe provocar “amolecências nos joelhos”. Ele inteiro tremia, irascível.

— Ela tinha que escrever isso pra mim. Para mim!

Como ela ousava se entregar para outro, isto é, dedicar palavras a outro? Ela, que só existia quando ele a lia? Ela que dependia dele para lhe completar os sentidos...?

Mas ela ia ver só, encarava com olhos ofegantes o castanho esverdeado da tela.

No escuro, à pouca luz do monitor, ele respirava com força. A mão tomava resoluta o rumo do zipper: eu quero.

— Desgraçada...!

Mal teve tempo de estrangular as sílabas de seu nome impossível num arquejo, segundos antes de gozar.