sexta-feira, 16 de setembro de 2011

MAGNIFICAT

"Exaltou os humildes, encheu de bens os famintos
Aos ricos despediu de mãos vazias”

Ou
O Homem de Estimação
                 
Dir-se-ia do animal que era de boa raça. A cabeça altiva de um pointer inglês, predominantemente preto ou acinzentado contra um fundo mais claro, por efeito do pontilhismo das manchas sobre o tapete do pêlo. Em pé, ele mesmo monumental, alheio à fachada do Teatro recém reformado, na Cinelândia. Via-se-lhe livre, pela ausência de coleiras. E era dos poucos livres àquela hora, em que escorriam os engravatados pelos ralos do metrô.  

Seria de rua? Ah, quase não se fazem mais cães de rua. Não nas metrópoles. Não na Rio Branco, a atravessar a pista sobre o riscado da faixa, a fazer falta a cachorrada vadia das ruazinhas de qualquer infância, os que corriam atrás dos carros e farejavam os dedos cautelosos como possibilidades (remotas) de afago nos passantes.    

Era impossível que um animal tão bonito existisse em plena cidade, sem curadoria certa. Porque ao belo, apropria-se-lhe sempre, por ser a beleza, assim, toda gratuita e sem propósito, coisa de estalar no peito, insuportável.  

Era então que se enxergava o homem, quase um rascunho descolorido contra as luzes da praça. Sujo. Pobre. De rua. Vinha o homem orgulhoso a dar ordens ao cachorro, crescido de autoridade. Que o esperasse ali, que ele voltava já. O cão seguia-o atento, familiar. Adestrado aos passos daquele a quem se acostumara a pertencer. E porque sabia suas deixas na costumeira cena, sentava-se por segundos sobre as patas traseiras, a tempo apenas de o homem precisar falar ligeiramente mais alto, forçado a virar-se para trás. 

O cachorro era, pois, a visibilidade do homem, a restituição de suas cores. E por lhe andar parelho, única beleza de seus dias, sentia com enternecida vaidade que o cão é que o escolheu. Vivia em face do animal a opulência de conjugar um ter, a integração numa ordem nova, em que os outros é que eram à margem. À margem de não terem o cão. 

Todo seu gestual excessivo, sua pantomima de afeto era para dizer ao espelho trincado dos olhos dos outros que “esse cão é meu porque me segue e me guarda”, surpreso de ter valor, de ser coisa que se guarde e defenda por caninas lealdades e dentes. 

O cachorro era-lhe a casa, em que viver sem receios, sem-teto a salvo do mundo pelo Papaiz de um rosnado. 

O cão dava ao homem a importância de um aposto, complexidade e nuances, sentimentos deveras delicados. Como essa vontade de lágrimas que era também uma alegria, essa certeza aflita, quase só uma impressão meio a medo, de que ele estava também, como todo ser que é eleito, destinado a viver grandes coisas.