segunda-feira, 9 de maio de 2011

Carpinejando

Tudo que seduz, abduz, de alguma forma. Leva-nos ao porão da intimidade, para onde descemos de mãos dadas. Abduzem o olhar secreto sobre as reentrâncias do pensamento do outro; o interesse genuíno de legendar o cacoete dos lábios, ou o ritmo da respiração; a intenção de catalogar os sorrisos.

O Carpinejar não é um mestre da escrita. É um mestre do olhar. Ele convida ao ininterrupto voyeurismo sobre as reações do outro, despindo-o. Ele se propõe a pensar sobre cada detalhe, num trabalho minucioso de bordadeira. Tudo ganha o canutilho de seu interesse. A tudo empresta brilho, relevância. É a opulência do olhar.

Alenta saber que existe. A menos que ele seja a mais amoral ficção de si mesmo. Não que seja tudo verdade. No amor, nem é preciso. A verrossimilhança do cuidado já despressuriza a carência, impede sua inflamação de bolha.

Tudo bem, eu me identifico, admito. Para mim, a quem o mundo se dá a conhecer Desde os Olhos, sendo este o título que me encabeça a cognição da vida, minha maneira de entrar em contato. Mas não é uma paixão narcísica, nascida da visitação do espelho. É o encontro com uma profunda sensação de ordem, ao ver consubstanciado meu mais caro dever ser. Ele põe as palavras em ordem, o olhar em ordem, o amor em ordem. 

Eu me encanto e emociono com a ordem proposta por ele. Soa-me certo. Como deveria ser. Sim. Eu responderia sim, sem pestanejar, à possibilidade de uma vida vivida nesses termos. Eu mesma já fiz essa proposta. Mandei gravar no avesso da aliança.

Todo olhar amoroso é um pouco um olhar de mãe. Olhar de quem precisa construir a partir de sinais a linguagem do outro. É claro que se corre o risco de inventar o outro no processo. Mas o interesse em traduzi-lo deve manter-se fidedigno, insuscetível a desgastes.

Talvez, toda história de amor comece com essa pergunta implícita: posso ser seu intérprete? Fale comigo, fale através de mim. Escreva as minhas falas. Conduza-me. Sim, porque há a vaidade de ser inventado pelo outro também, de saber que o outro nos empresta toda a beleza do próprio olhar. É um convite para a nudez, em todas as suas formas.

Serás meu guia e eu tua intérprete. Uma mulher cega e um cão fiel.

Que me reinventes o gesto do olhar com as terminações dos pêlos. Que eu nos transcreva as falas, taquigráfica, enciclopédica. Mas nada disso pode durar se a ambos não tocar a curadoria das memórias, esta gravíssima incumbência. Desinteressar os olhos é desincumbir-se covardemente, sem apontar substitutos. Deixar ao outro a vacância do zelo, a opacidade empoeirada do beijo que não se usa mais. 

Requer mesmo trabalho árduo, de borralheiro. Amar é lustrar os trincos e atravessar o limiar do espelho.

terça-feira, 3 de maio de 2011

O Leitor

...porque quem lê, se apropria do que lê.

Tão misteriosos são os critérios da assim chamada “química”, a lógica aleatória do desejo. Este homem, que se orgulha de jamais haver engrossado as estatísticas dos contadores de acesso a sites pornográficos, com a roleta dos números escalonando como o orgasmo em falsete de uma má atriz, um homem, logo se vê, de boa educação, dos que ainda usam cavanhaque e modos britânicos. Mesmo a minuciosa auditoria de seu browser revelaria em sua lista de favoritos apenas links culturais, fóruns de discussão de cinema, preferencialmente o francês, e, quando muito, uns tantos blogs autorais de literatura que havia se habituado a seguir. Era o quanto concedia a estas modernidades esse homem clássico, amante do atemporal.

Até o dia em que entrou no blog dela.

Era uma aspirantezinha a escritora comum, isto é, seus textos não tinham nada demais. Vá lá que se notava uma atenção delicada na escolha das palavras, um respeito pelas regras do português. Acontece que, ao lê-la, sentia um estranho formigamento, um aguçamento não-habitual dos sentidos.

Não tinha a ver com os temas sobre os quais ela discorria, não era isso. Tampouco ela se utilizava do expediente amplamente difundido de associar fotos e imagens aos seus textos, que pudessem desencadear qualquer cobiça no olhar ou essa despropositada trepidação subterrânea do instinto.

Pensando bem, ela deveria ser uma mulher feita. Quer dizer, corrigiu-se ao pensar nela tão sem rodeios, como mulher. Ela deveria ser um adulto de, certamente, mais de 30 anos, o que serviria para explicar sua escolha estético-conceitual por uma utilização parcimoniosa de recursos de editoração da internet. Ou mais de quarenta, se fosse o caso de a dita sobriedade dos recursos indicar apenas pouca familiaridade com a tecnologia do blogger.

Da primeira vez, foi levado até ela, redirecionado pela lista de indicações de um blogueiro já conhecido, cujo gosto pareceu-lhe relativamente confiável. Ou muito se enganava ou já havia até lido um comentário dela em postagens anteriores de “Humano com H”, algo conciso, pretensamente filosófico, o que demonstrava alguma preocupação em parecer inteligente.

Teria sido esse caco de espelho em que se vira refletido? Fato é que ele percorreu, de início, diagonalmente, o texto dela e foi então que lhe ocorreu pela primeira vez o estapafúrdio fenômeno. Remexeu as pernas, sem entender como acionara o súbito caps.lock, o volume que crescia dentro da calça. Releu o trecho cuidadosamente, buscando indícios:

“(...) seguimos primitivos como as formigas: precisamos roçar as antenas com nossos semelhantes para estabelecer contato. E este sinal - o toque - quando se perde, amputa-nos da dimensão do outro que conosco formava o corpo coeso de um abraço (...)”

Levantou-se, perturbado. Não havia ali nada, absolutamente nada demais. Nada que explicasse esse estremecimento no cerne de sua virilidade. Muniu-se de café, prevendo que a madrugada se anunciava longa, exigindo-lhe explicações.

De um só fôlego, leu tudo dela. Como era desconcertantemente excitante formular a coisa assim: tudo dela.   Em cada post, tropeçava com os olhos em palavras-brechas, que insinuavam. Insinuavam o quê? Não era claro. Mas não é todo insinuar o contorno do impreciso? Nacos de nudez de uma Gestalt profundamente feminina, que se lhe oferecia em contraponto à aspereza de barba, sua interface de contato com o mundo.   

No outro dia, chegou ao trabalho com os olhos trincados de vigília. Nada daquilo fazia sentido. Essa mulher, de quem conhecia pouco mais do que o nome com que assinava uns escritos medíocres, tornados públicos. Que sequer lhe haviam sido endereçados, portanto. Embora lhe acertassem o alvo das pulsões com precisão de míssil.  

O café, talvez. O excesso de café é que o tornara suscetível. Essa queimação na boca do estômago, tão diferente de sua gastrite crônica, que sempre espumava no vencimento dos prazos. Era preciso observar melhor, investigar mais.

Na noite seguinte, bem alimentado, na companhia de uma taça de vinho branco, digitou na barra do browser, por extenso, o endereço da página dela. Num primeiro momento, pareceu-lhe totalmente inofensivo e mesmo perfeitamente assintomático o que veio a se revelar um de seus mais inexplicáveis fetiches: o de soletrar o seu acesso.

Havia postagem nova, o que, de certa forma, o desorganizava. A ele, que se programara mentalmente a simplesmente reler os trechos que havia sem querer memorizado, tão banais eram as palavras desta mulher, fáceis como refrões de pop-rock. Este convite ao novo desintegrava seu insubsistente corrimão de certezas, à medida que descia a escada em espiral do texto novo.

“Eu quero (...)” - escrevera a mulher.

O período se estendia para muito além do querer, mas o olho do homem continuava refém do que se descortinava por detrás da fechadura do verbo. Ela não havia escrito “queria”, como os que negociam prazeres. Disse, com voz de comando, com um desejo perigosamente assertivo: eu quero.

Não era possível que ela regesse assim suas fantasias, com uma única palavra. As mesmas palavras que ele ouvira, tantas vezes, em outros blogs, outros textos, outras bocas.  

Invadiu seu perfil com violência, em busca de vestígios, uma nota de perfume, um livro favorito, o elemento do seu signo, qualquer terra em que firmar os pés, qualquer coisa. O nome. Dela havia apenas o nome hermético. Nem mesmo a cidade, nenhuma foto, nada.

A pouco e pouco se reconhecia escravizado por essa inexplicável obsessão. Passava dias sem comer direito, a esperar o sinal de seu “feed”.

E se ela demorava a postar, perseguia seus comentários nos blogs afins. Às vezes parecia que ela escrevia de propósito, para afetá-lo ou para provocar-lhe coisas. Em todo caso, para lhe provocar. Ficou cego de ciúmes quando leu no texto de um autor moderninho, a quem ela já elogiara antes pelo que chamou de “humor masculino”, algo como ele lhe provocar “amolecências nos joelhos”. Ele inteiro tremia, irascível.

— Ela tinha que escrever isso pra mim. Para mim!

Como ela ousava se entregar para outro, isto é, dedicar palavras a outro? Ela, que só existia quando ele a lia? Ela que dependia dele para lhe completar os sentidos...?

Mas ela ia ver só, encarava com olhos ofegantes o castanho esverdeado da tela.

No escuro, à pouca luz do monitor, ele respirava com força. A mão tomava resoluta o rumo do zipper: eu quero.

— Desgraçada...!

Mal teve tempo de estrangular as sílabas de seu nome impossível num arquejo, segundos antes de gozar.