sábado, 30 de julho de 2011

A Arquitetura do Interdito

Porque uma paixão extemporânea, se declarada, 
faz nascer dois sitiados em lados avessos de um mesmo muro.
       
       Era um portão de abertura a exigir força descomunal e dolorosa. Alto. Austero. De bronze maciço. Pesado, portanto, como uma tristeza maciça. Que também é uma proibição de passagem.
       As duas folhas perfeitamente complementares, jungidas numa aliança de ferrolhos. Bem no centro, pendia da boca ameaçadora de uma cabeça de leão a alça convidativa da aldrava. 
         Por muito que percorresse a amplitude do jardim que o circundava a quase perder de vista, ele chegava sempre àquela inevitável demarcação de um limite. 
        Para além era o interdito. O haver muro não o intrigava tanto como o haver portão. Porque o muro era o imponderável, em sua irrecusável natureza de realidade posta. Mas o portão era caminho ainda. Bastava, para isso, mover-se-lhe as dobradiças, divorciar as folhas perfeitamente complementares, instaurar a fresta por onde escapulir-se o corpo para dentro de um novo todo, aparentemente ilimitado, a que ouvira chamarem casa - a palavra misteriosa.  
       Jamais soubera como era estar dentro. Habitava as extensões do afora, herdadas ao pai, que eram da casa a imediata vizinhança.
       Não havia registros precisos de quem exatamente ordenara que primeiro se levantasse o muro, aonde mais tarde se veio a afixar o portão. Certo é apenas que muro e portão o precediam, como a profecia cíclica do impasse. Talvez os de casa temessem o dissoluto, tanto quanto os de fora temiam a clausura instável do teto para o céu que era seu. Não haver teto era jamais sofrer o risco de ruir. E, no entanto, a aldrava era a despropositada possibilidade de chamado entre os mundos-medos inconciliáveis.
        Muitas vezes ele fizera soar os golpes da aldrava, tremendo de antecipação e espera. Não sabia se lhe assustava mais a hipótese de se lhe abrirem os portões de par a par, a possibilidade de devassar a casa pelo meio; ou a de sequer registrar a aproximação ansiosa daquela que, junto ao portão, do outro lado, respirava. Coisa viva, matéria igual à sua. Saber dela, habitava-o, ao mesmo tempo que o tornava irremediavelmente sozinho. Soube-se pobre do que não tinha. O que lhe era familiar, agora desamparava-o. A amplitude se tornara apenas a métrica desoladora do vazio.
     De fato, nada lhe parecia mais seu do que o que estava guardado do outro lado. Guardado dele, portanto. Não haveria trespasse que não constituísse, forçosamente, uma transgressão.
     Por isso parecia-lhe que devia de novo correr na direção oposta ao portão e seu intransponível deboche de caminho feito para não se passar, apequená-lo pela distância, expulsá-lo dos olhos, à medida em que voltasse a se embrenhar em seu paraíso de exterioridades e jardins. E com isso adiaria, uma vez mais, o reencontro da casa, em suas coordenadas imutáveis: naquela longitude exata em que se desencontravam os tempos.

domingo, 3 de julho de 2011

Germiniscências

Texto postado originalmente no blog Para eu Parar de me Doer

Saiu da loja de perfumes, aproximando suavemente o pulso do nariz, para sentir-lhe a fragrância. A mão pendia-lhe oblíqua, com as costas voltadas para fora, como na pausa coreográfica de uma bailarina, revestindo de elegância o distraído gesto. Sim, havia qualquer coisa nela que dançava! Seu caminhar tinha a leveza volante de um invisível voil, vinham e iam as ancas em balanço pendular, cadenciadas.

Seria a mulher a rosa que se cheira? - brincou-lhe o pensamento a propósito da estampa floral que vestia. Tudo nela exalava um aroma frutado de flor fecunda, doce, doce, olhos dulcíssimos, rebrilhando úmidos como o vértice de um hibisco. Apertou o ventre com as mãos em concha, como a proteger um enigma e atravessou a rua, o sinal ainda aberto aos carros, em atitude desafiadora, só para vê-los curvarem-se sob o comando de uma súbita frenagem à altivez da vida.

Gostou da idéia de que as coisas em volta dela, a partir de então, desacelerassem. Havia mesmo mais silêncio, como quando cai a neve e suprime-se o barulho dos passos.

Deixou-se tomar pela visão íntima de uma paisagem toda branca, a que associava, paradoxalmente, um calor de Glühwein, bebido em pequenos goles - o vinho que se serve quente e condimentado nas festividades teutônicas do Advento. E lá se se iam muitos anos desde que voltara de lá. 
 
A invocação inebriante do cheiro macerado de cravo, uva e anis, levou-a a fechar os olhos, inalando gulosamente o ar até o limite dos pulmões, retendo um pouco a respiração, como a perscrutar vestígios das notas exóticas do aroma dentro de si.

Levada pela correnteza das associações sinestésicas, sintetizava em sinapses rápidas experiências diversas, sensoriais ou não, se resultantes do intelecto.

E tinha ainda a sugestividade da palavra “Advento”, cujo conceito fulminara-lhe sob uma conotação inteiramente nova...

Os parênteses se abriam em sua mente com o poder de multiplicação de bonequinhas russas, as memórias saindo umas de dentro das outras, em uma infinita cadeia remissiva, um fio contínuo de histórias que era, no fim das contas, o que lhe arrematava a tessitura do ser.

Munia-se, inconscientemente, de referências, tantas quantas possíveis, sobre o processo de viver: suas sensações, suas razões, suas implicações, seu sentido.

Mais do que nunca precisava entrar em contato com a natureza das coisas, sistematizar o precário saber, como o pássaro laborioso a construir com fragmentos a dimensão imaterial do ninho, pois suspeitava estar incumbida de transmitir, mais do que a realidade do corpo ao que se lhe formava dentro, um modo de estar no mundo, de relacionar-se com ele.

...Os que julgam que a criação é forma apenas de forjar a criatura, desconhecem a carga transformadora do ato de criar, donde o próprio criador se origina. Origens...Origem. A palavra escancarou-se como a boca de uma baleia, tragando-a para dentro. 
 
A lucidez nela aguçou as retinas, tentando recuperar a nitidez dos contornos ao adentrar o escuro mistério.