Eu o amava muito. A ponto de desejar seu corpo, que, do contrário, nem me atrairia. Amava sua língua estrangeira. A consubstanciação da metáfora da comunicação como um eterno esforço de traduzir-se. A possibilidade do exílio.
Não sei bem quando as coisas começaram a terminar. O término é um processo que se conclui com uma sentença meramente declaratória: acabou. Dizê-lo é que é constituir o rompimento. Restabelecer a verdade da ausência.
Eu estava no boteco de sempre, tomando café da manhã e alguém pediu esfiha. Lembrei, sorrindo, que ele sempre trocava o nome do salgado com Efigênia e pedia ao balcão, inocentado pelo sotaque, um nome de mulher para o desjejum. Os olhos galhofeiros do balconista, faziam-no consultar meu semblante para certificar-se de que dissera algo errado, traído de segundas intenções pela língua que não era a sua.
Naquela hora, a recordação doeu-me baixinho, como uma lembrança já antiga. Não me ateou nenhuma emoção presente. Não senti propriamente saudade. Revirei os bolsos do sentimento, assaltada. Não estava lá a necessidade do outro. Ele já tinha se convertido em memória. E não doía.
Mas doía perceber que não doía.
Voltei pra casa sem dar pelo caminho, modulando a palavra pelos quarteirões: acabou... acabou?
Acabou.
À medida que me dava conta da realidade irrevogável da palavra, crescia em mim a gravidade de ter que dar ao outro, por telefone, a notícia da morte de ente nosso, tão querido e próximo ─ o amor.
Antecipava-o chorando sobre o corpo inerte de seis anos. Por que? Por que ele? Por que nós?
Toda morte é inesperada. Ainda que apenas culmine um estado terminal. Põe-nos a discutir porquês e distribuir responsabilidades.
Completada a ligação, o desligamento. Esprememos o tumor do silêncio, recompondo pistas, invocando mágoas. Acusando. Defendendo-nos. Confessando. Desta morte éramos o morto e o carro em alta velocidade que ignorou todas as placas de advertência. Espremíamos mais. Por que nos ensinaram que depois da extirpação viria a sanidade.
A conversa, eu me lembro, não foi longa. Longos foram os dias que se seguiram, acostumando os dedos a não discar DDIs, a não escrever um e-mail toda vez que virava a voragem , a cancelar aos clicks a passagem do próximo reencontro, que já estava comprada. Cancelados o natal e os presentes, desobrigávamo-nos de novas memórias.
As pessoas, quando participadas da notícia, reagiam com naturalidade, validando:
─ Foi a distância.
Nem me dava ao trabalho de explicar que é sempre a distância. Não tinha a ver com a quilometragem entre os continentes nem com o mar que lhes vai pelo meio. Somos incompetentes para construir pontes de muito menor escala.
E então me dei conta de quando tudo efetivamente começou a terminar: quando começamos a viver juntos. Paradoxalmente, nos três anos em que morávamos em países diferentes, éramos o quintal da alma um do outro. Buscávamo-nos com avidez de esconderijo. Interessávamo-nos verdadeiramente por explorar cada palmo daquele espaço que o outro era em nossa vida. Interessávamo-nos por cada elemento novo, pela floração de nuances. Corríamos ao encalço de todas os balões que nos caíssem por cima dos muros vizinhos.
Mas, quando fui morar na Alemanha, paramos de nos buscar. A obviedade da presença do outro fez nossas almas se desencontrarem, por deixar de procurar a brecha, o momento, a oportunidade da troca. A disponibilidade nos empobreceu um do outro.
No fim, o fim já tinha sido. Consumado o luto pela ausência da luta no decurso da própria acomodação.
A morte do amor é sempre violenta. Sobretudo se expira no sossego paralítico do lar, no descaso dos lençóis. Não é o amor que dói quando acaba. É o frio desconcertante da nossa própria indiferença sobre as feridas que nos eram caras. As que nos enchiam de delicadeza para romper com a mediocridade estabelecida. Por tempo demais.