domingo, 25 de julho de 2010

Epitáfio Prolixo Sobre Desamar

Eu o amava muito. A ponto de desejar seu corpo, que, do contrário, nem me atrairia. Amava sua língua estrangeira. A consubstanciação da metáfora da comunicação como um eterno esforço de traduzir-se. A possibilidade do exílio.

Não sei bem quando as coisas começaram a terminar. O término é um processo que se conclui com uma sentença meramente declaratória: acabou. Dizê-lo é que é constituir o rompimento. Restabelecer a verdade da ausência.

Eu estava no boteco de sempre, tomando café da manhã e alguém pediu esfiha. Lembrei, sorrindo, que ele sempre trocava o nome do salgado com Efigênia e pedia ao balcão, inocentado pelo sotaque, um nome de mulher para o desjejum. Os olhos galhofeiros do balconista, faziam-no consultar meu semblante para certificar-se de que dissera algo errado, traído de segundas intenções pela língua que não era a sua.

Naquela hora, a recordação doeu-me baixinho, como uma lembrança já antiga. Não me ateou nenhuma emoção presente. Não senti propriamente saudade. Revirei os bolsos do sentimento, assaltada. Não estava lá a necessidade do outro. Ele já tinha se convertido em memória. E não doía.

Mas doía perceber que não doía.

Voltei pra casa sem dar pelo caminho, modulando a palavra pelos quarteirões: acabou... acabou?

Acabou.

À medida que me dava conta da realidade irrevogável da palavra, crescia em mim a gravidade de ter que dar ao outro, por telefone, a notícia da morte de ente nosso, tão querido e próximo ─ o amor.

Antecipava-o chorando sobre o corpo inerte de seis anos. Por que? Por que ele? Por que nós?

Toda morte é inesperada. Ainda que apenas culmine um estado terminal. Põe-nos a discutir porquês e distribuir responsabilidades.

Completada a ligação, o desligamento. Esprememos o tumor do silêncio, recompondo pistas, invocando mágoas. Acusando. Defendendo-nos. Confessando. Desta morte éramos o morto e o carro em alta velocidade que ignorou todas as placas de advertência. Espremíamos mais. Por que nos ensinaram que depois da extirpação viria a sanidade.

A conversa, eu me lembro, não foi longa. Longos foram os dias que se seguiram, acostumando os dedos a não discar DDIs, a não escrever um e-mail toda vez que virava a voragem , a cancelar aos clicks a passagem do próximo reencontro, que já estava comprada. Cancelados o natal e os presentes, desobrigávamo-nos de novas memórias.

As pessoas, quando participadas da notícia, reagiam com naturalidade, validando:

─ Foi a distância.

Nem me dava ao trabalho de explicar que é sempre a distância. Não tinha a ver com a quilometragem entre os continentes nem com o mar que lhes vai pelo meio. Somos incompetentes para construir pontes de muito menor escala.

E então me dei conta de quando tudo efetivamente começou a terminar: quando começamos a viver juntos. Paradoxalmente, nos três anos em que morávamos em países diferentes, éramos o quintal da alma um do outro. Buscávamo-nos com avidez de esconderijo. Interessávamo-nos verdadeiramente por explorar cada palmo daquele espaço que o outro era em nossa vida. Interessávamo-nos por cada elemento novo, pela floração de nuances. Corríamos ao encalço de todas os balões que nos caíssem por cima dos muros vizinhos.

Mas, quando fui morar na Alemanha, paramos de nos buscar. A obviedade da presença do outro fez nossas almas se desencontrarem, por deixar de procurar a brecha, o momento, a oportunidade da troca. A disponibilidade nos empobreceu um do outro.

No fim, o fim já tinha sido. Consumado o luto pela ausência da luta no decurso da própria acomodação.

A morte do amor é sempre violenta. Sobretudo se expira no sossego paralítico do lar, no descaso dos lençóis. Não é o amor que dói quando acaba. É o frio desconcertante da nossa própria indiferença sobre as feridas que nos eram caras. As que nos enchiam de delicadeza para romper com a mediocridade estabelecida. Por tempo demais.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Mitologia Urbana: O Flerte

Definitivamente, "a bad hair day" concluiu Medusa com os cabelos, serpentinhas filhotes teimando em não lhe assentarem à cabeça. Resignou-se ao balé espasmódico e despenteado dos fios e saiu à rua, olhos fitos na calçada. Da imagem cinética dos passantes destoava um ponto fixo, na curva panorâmica de sua visão. Detectou o homem. Petrificado.

Mas como, se eu nem cheguei a lhe deitar os olhos?

Incomodada, encardiu as retinas no intervalo das pedras portuguesas, evitando ver. E pensou que, se piscasse de forma lenta o suficiente, apagando a figura do homem, quem sabe ela mesma não desapareceria? Tinha, sempre que convinha, uma crença infantil de que a visão deveria reger-se pela elegância dos pactos estritamente bilaterais: de só sermos vistos por aqueles que igualmente nos interessa ver.

Acostumada a fazer tropeçar os homens com seu olhar perdigueiro, desta vez, a coisa acontecia em uma nova configuração. O homem é que a encarava de longe.

Os olhos, lentes que são, esquentam a superfície do que olham quando se demoram muito, convergindo raios. Objeto deles, a mulher ruborizava.

Aquele homem não tomava, como era praxe, a rota de fuga de seus quadris. Seu olhar era exato, na direção inegociável dos olhos. Tão imóvel era o olhar do outro sobre ela que parecia imprimir-lhe uma invisível frenagem. Desacelarava-lhe a marcha. Até que, por fim, estancou.

Em se cruzando os olhares, o resultado é o que todos conhecemos: dois seres marmorizados, medindo-se sem pressa, em plena via. Os outros contornando-os aos esbarrões.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

In Vitro

Como se foco exigisse cegueira, interrompi o giro no meio para olhar fixamente para um único lugar-horizonte, determinada a gerar.


Desenganada do verbo que me dá timbre à solidão, ambicionava a carne, o filho.


Eu, que nunca gostei de vestir esperanças, pela textura da ânsia ─ que é seu avesso. E como pinica! Pus-me a consultar as entranhas com a atenção com que, quando pequena, observava o algodão úmido para tentar capturar o feijão em seu movimento de coisa se formando no experimento escolar.


Nunca aprendi a lição: a vida sempre acontece quando estamos distraídos. Não gosta de ser flagrada em sua toalete de rosa desabrochada. Nunca desabrochando. Desconfio de que não há gerúndios na natureza e, sim, sucessivos presentes. Agora, ainda não é. Agora, já está. Com a destreza da capa do mágico, talvez só se nos revele o que lá sempre esteve, oculto em mistério e bastidor de ser.


Em mim não vingaram os feijões. Chorei coágulos grossos de sangue pelas pernas. Sobrou-me o pires de restos ─ algodões molhados, dois grãos herméticos, sem brechas pra vida. Toda a pobreza em mim é este pires que suplica o milagre do broto, esta louça rasa com pretensão a jarro com que sonho raízes.


Recolhi-me às prateleiras, tentando disfarçar a desordem sob a pilha perfeita de dias de igual diâmetro. Coloquei-me no fundo da pilha, adiando. Cansada dos experimentos. Das experiências também.


...Desde quando me quebrei pela última vez, esqueci a sabedoria da pele: trago o vidro trincado, sem registro de regenerar. Sempre que entro em contato, desentendo organicamente: os dedos contraem-se de dor contra as bordas ríspidas do não.