sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Vegetativo

O dia gastou-me até o caroço de mim. O tempo e suas mandíbulas de ponteiros roeram-me ainda o hermético núcleo, empurrando-me contra o duro palato, para, então, girar-me contra a língua espessa das horas à cata de alguma sobra nas reentrâncias. Julgando que me esgotara, deitou-me fora, farejando os restos com o desdém dos cães às tigelas vazias.

...Mas o caroço é a astúcia das coisas, resguardando-se...

Partisse-me o grão, aí sim, mordia-me em cheio o ser. Na porção-grão irredutível de mim, germino a lenta reinvenção da força. Afinal, a palavra de ordem de toda semente é vingar.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Se eu me chamasse Raimundo...

Já alertava o poeta: “Mundo, mundo, vasto mundo/ Se eu me chamasse Raimundo/ Seria uma rima, /Não seria uma solução”. Não sei o que é que há com os antigos nomes das coisas, os que nos amparavam, em meio ao caos cotidiano, com o conforto da familiaridade. 

Em tempos de modernidade líquida, há um inflacionamento de termos, que provoca a troca alucinada das etiquetas, se não mais a dos preços, como nos idos do plano cruzado, agora sobretudo das cores. Daí que, hoje em dia, as atividades mais simples me infligem a angústia de não mais conseguir me comunicar eficientemente com os meus pares.

O segmento de roupas, principalmente o feminino, vem sendo assolado por uma peste hortifrutigranjeira, o que tem ensejado o escalonamento hidropônico dos meus níveis de espanto. 

Dia desses, eu perguntei à vendedora se tinha o meu número do vestidinho verde da vitrine. 

Ela:  
— Verde??? (visivelmente confusa)
Eu: 
 — Exato. Verde, sabe como? Verde.
Ela (como se eu tivesse inaugurado o conceito de verde na história da humanidade): 
 —Verde???

Sua interrogação era ameaçadoramente perplexa e já atraía sobre nós a atenção dos demais.
Eu, intimidada, limitei-me a apontar o vestido, com um indicador trêmulo e sem convicção.

Ela, como a restabelecer para si uma ordem perdida: 
 — Ah tá, você quer dizer o hortelã.

Eu quase pedi para ela trazer também o rosinha, de um outro modelo tomara-que-caia, mas, precavida, preferi não arriscar dizer o nome da cor em si e improvisei,  afetando ser descolada:
 — Aproveita e me traz o sashimi.

Ora, meu bem, se a moda são as cores cruas ela que se vire para me entender!

Nem mesmo as cores primárias são poupadas da nova onda: amarelo virou limão-siciliano e vermelho, dependendo do tom, é cor-de-carne; tomate ou não podemos esquecer a variação do cereja. Temos que agora o bege é macadâmia. Se for bem clarinho vira lichia.  E o ocre, Deus meu!, o ocre só existe na referência saudosista dos que foram educados na infância à base de lápis-de-cor Faber-Castell.  Se precisar, algum dia, pedir numa loja uma peça de roupa ocre, experimente dizer algo do tipo “casca de kiwi”.

Tudo isto eu pensava enquanto via outra vendedora prestando interessante consultoria a uma garotinha, que a tudo ouvia com olhos piscantes e atentos:

— Então, você pode combinar essa calça pau-de-canela com um topzinho mostarda.

E eu me pergunto: isso não dá indigestão? Ou a menina realmente comprou a idéia de que, vestida de especiarias, com muito mais propriedade, seria chamada nas ruas de “gostosa”? 

Mas não são só os hortifrutigranjeiros que estão em alta no mundo da louca costura. Temos também a utilização indiscriminada de conceitos arquitetônicos.

Certa feita, a vendedora me trouxe uma blusa uns quatro números acima do meu. Eu perguntei, já um pouco melindrada: “escuta, você não tem tamanho 38?”. Ela me responde blasé: “esse é o 38, meu bem. É que essa blusa tem um corte amplo. Está na última moda”. 

Aí, eu é quem pergunto:

 — Amplo???

Deve ser por isso que chamam de “último grito”. O da razão, antes de desfalecer.

sábado, 20 de novembro de 2010

Os Salteadores

Era uma cidade-balneário, onde já não se tomava banho de lagoa. A lagoa tinha-se posto turva como um coração humano. Dizia-se que estava agora recuperada. Mas a lagoa enfrentava descrenças. Pureza será mesmo coisa que se recupere?

Pouquíssimos carros levantavam poeira nas ruas de terra batida. Passavam lentos como a querer surpreender algum vivente que lhes sinalizasse a rota de saída. As pedras dos calçamentos, pouco a pouco, acolchoavam-se pelo capim.

Eram grandes as casas. Insolitamente grandes e confortáveis. Construídas de bons materiais, com muitos quartos, varandas. Às vezes tinham bancos como os de praças à entrada. Tudo rigorosamente vazio, esperando. Como se os tempos dos veraneios fossem voltar, carregados de malas e risos de filhos pequenos.

Os muros baixos de portões aferrolhados, com os ferrolhos acometidos de artroses, juntas nodosas, atrofiados para o gesto de abrir.

As persianas cerradas. As casas já não espichavam olhos para a rua. As portas eram bocas emudecidas, pitando ausências.

As casas opunham como podiam resistência ao vento. O vento era mais temido que o tempo. O tempo passava em hordas de meses e saqueava as fachadas, pisoteava os gramados, decepava as flores.

Mas o vento forçava as portas, ameaçava as janelas, desmantelava as trancas. O vento assanhava as cortinas. Não se contentava com os quintais. Queria entrar, amarrotar as camas, verter a poeira de sobre a mobília, derrubar as taças, violar as fotografias. Queria expor as entranhas.

Vez por outra via-se uma casa com as vidraças estouradas, os móveis relinchando confusos, cavalos de estrebaria sem saber bem para onde. O vento açoitando-lhes o dorso. As quatro patas inertes. Os estofados umedecendo, aflitos, desbotando a estamparia de susto. Acabou-se o tempo da domesticidade! - decretava o vento às casas baldias.

A hera crescia sua barba extensa sobre a cidade mal dormida.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Onde Ser

Enquanto abria a cortina com gestos bem dispostos, dois curtos trancos de cada lado, separando as folhas do tecido, cantava.

O la-la-ra-iá era um sorriso de boca inteira e, quando tomava fôlego, aspirava um pouco da poeira transparente e rebrilhosa que se desprendera do pano sóbrio, espécie de pirlimpimpim da manhã já alvorecida mágica e promissora.

Tinha posto não seu melhor vestido, mas o mais gracioso, o mais leve, o mais alvo, o mais próximo da nudez. Era assim que se sentia: trajada de nudez esvoaçante. Mas não, não pretendia sair. Queria muito mais explorar a própria casa, para onde se mudara há poucas semanas.

Trazia os pés descalços, atentos ao relevo do piso frio, esquadrinhando alegres os rejuntes da cerâmica cor de marfim, qual focinho perdigueiro em canteiro novo.Era raro estar em casa naquela hora da manhã, em que o sol incidia em cheio em sua janela. 

Não se possui verdadeiramente uma casa enquanto não se lhe conhece todas as nuances da claridade: em que recantos se escondem os raios mais atrevidos, como as paredes se comportam ao pôr do sol, se enrubescem ao beijo de despedida.

Outro dia estivera nublado. A casa era um navio na névoa e o mais indicado seria atravessá-la com um lampião levado à altura dos olhos. Um silêêêêncio... Oh, sim, a casa requeria travessias. E sabia entoar silêncios. Era, como diria sua avó, dessas que têm "lá dentro". A sala e os quartos separados por um corredor, em que a luz de uma extremidade esmorecia antes de chegar ao outro lado. Cruzá-lo era confiar no convite ofuscante do cômodo seguinte. Era, portanto, empreender minúsculos nascimentos e dar-se renovadamente à luz. 

Achava que todas essas informações relevantíssimas deveriam constar dos classificados. Não bastava o enxuto rol do número de peças, a metragem total, se tem garagem na escritura ou não. Mais do que isso, lhe interessarava sempre a dimensão da luz, a proporção que esta ocupava no ambiente.

Tinha um amigo com ótimo senso de orientação, que alugara um apartamento no Humaitá exclusivamente pela lua cheia que lhe pratearia o estar. Ficava à noite, milagrado, observando a tatugem enluarada do rendilhado dos cobogós varando a sala. Sua irmã, Ana, também decidiu-se por morar num loft, cuja ausência de paredes facilitava a mais ampla circulação da luz. Então porque ela não compraria uma casa por sua possibilidade de...de amarelo, como explicar? 

Era um condicionamento antigo, adquirido dos álbuns de figurinha da infância: as que tinham contorno dourado eram, de alguma forma, especiais. Parecia-lhe que a lembrança, assim como as figurinhas, contornava as memórias prediletas com um marcador reluzente, ao que convencionou chamar,de si para si, do fenômeno das memórias amarelas. Sendo a sensação amarela o sinônimo cromático do que lhe deixava feliz.

Mas, claro, não foi só por isso que se decidiu por aquela casa, dentre todas as outras. A casa não escolhe menos o morador do que este à casa. Há entre a propriedade e o pertencimento um enigma de Colombo: o que vem primeiro? E mesmo as duas palavras se irmanam, siamesamente plurívocas. Apropriamo-nos do que nos é próprio (natural)? Pertence-nos a casa ou lhe pertencemos nós?

Lembra-se ainda de quando o corretor abriu a porta, para lhe apresentar a casa. As lembranças do que nem vivera correram a saudar-lhe à entrada, dóceis como os cães ao dono que regressa. Viu seus filhos dispararem pelo corredor, chamando em eco: vem ver, mãe! Os filhos que ainda não tinha. Pediam-lhe a casa. O ninho. Desde então sua esperançosa doçura aconchegava o ventre sobre os vãos da casa, alcochoados de fiapos de sonhos trazidos ao bico pelo caminho. Emprestava às entranhas da casa o calor das próprias entranhas. Amalgamava-se à casa. A casa própria. Casa propícia. 

De pé, sobre sólidas fundações, era uma mulher contente, chocando.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

PalavrAbraço de Desconsolar Amigo

Amiga querida,

Eu nunca tive bichos. Fora pintinhos coloridos de feira de cidadezinha de interior e os coelhinhos de que lhe falei mais cedo. Ainda assim, o exercício era, na época, mais de ter do que de amar. E mesmo os coelhos, que ficaram tão pouco tempo lá em casa, não eram bichos de se misturar com filhotes de outra espécie. Eram, na verdade, pouco mais interativos do que bichinhos de pelúcia e era pena, porque o instinto que lhes animava era, ao contrário do que eu acalentava, o de fugirem de mim. Por isso, eu gostava deles um bocado amuada, sabendo-me não correspondida. Nunca se aproximaram de minha mão que não fosse pelo artifício de um petisco. 

Era assim: eu amava sua decorativa fofurice e eles o milagre de comer com fartura, sem nem precisar fazer esforço. Gosto de pensar que, para eles, eu era uma espécie de prodigiosa providência. E eles? Ah, eles eram meus. 

Era novo isso de possuir coisa viva. Envolvia responsabilidades: proteger, alimentar, limpar. E eu? Eu gostava de cuidar deles, de ser responsável por eles. 

Quando tiveram febre (e eu não sabia que bicho também tinha febre), lembro que me senti impotente, vendo as patinhas sem força, os bichinhos num canto, encolhidos. Peguei-os nas mãos, um em cada, senti que tremiam e que nem se defendiam de mim. Quase gostei de vê-los indefesos. Mas a criança em mim era mais generosa e desentendia tudo que não fosse saúde. Levei-os para a minha mãe, vexada, ansiosa. Deitei-lhe os coelhinhos no colo, para que ela tratasse de curá-los. Ninguém como ela para  amansar uma febre. Pedi-lhe, de fato, nada mais, nada menos que a cura. E imediata, que era a medida de tempo que eu entendia. 

Não sei dizer do amor que senti por ver minha mãe ali, concentrada, verdadeiramente imbuída da tarefa de curar dois coelhos e uma aflição de filho, umedecendo a ponta dos dedos num pires d'água e molhando, com leves toques, a boquinha deles. 

Pouco a pouco as linguinhas rosadas ganhavam agilidade e lambiam com vigor as gotículas que pendiam do indicador de minha mãe. E eu sabia que ficariam bem, porque estar vivo era ter sede e gana de empenhar toda energia no movimento pelo que falta. 

Esqueci rápido o susto, confiante, como toda criança, no presente em que vivia. De modo que, no dia em que cheguei em casa e vi no quintal a gaiola vazia, o gramado vazio, o quartinho vazio, fui pedir satisfações de onde estavam os coelhos. Nem por um momento, me ocorreu que não estavam. Morrer era isso? Perder do alcance do toque? Muito tempo depois, quando morreu meu avô, entendi que era pior: era perder ao alcance da troca.   

Seu caso é, em tudo, diferente do meu. Você sendo crescida e tendo modos de mãe, desejo de mãe. Sua Flor, que isso é bem nome de cachorro seu, um comovente filhote sem modos. Exigia atenção, reprimendas e, sobretudo, carinho com olhos que eram duas compridas pontes entre o ser gente e o ser cão.    

Não sei como será isso de perder o toque e a troca no mesmo bicho, que não seja humano. Nunca tive cachorro ou outro animal a que pudesse chamar efetivamente de estimação. Nunca tive a riqueza de conhecer o íntimo do que não me é organicamente  semelhante. Mas uma coisa intuo, sem saber bem do que falo, é que pouco haverá de importar a natureza do amor ou a espécie do que se ama. Maldita é toda perda do que se ama. Requer o processo laborioso do luto sobre a ausência. Sobre o silêncio. Sobre o vazio. Digestão ao contrário que faz assimilar não a substância, mas a falta dela. Roer do outro a desintegração da carne, o colapso do substantivo. Nenhuma mão que se estenda para um afago deveria ficar sem a resposta táctil de uma pele, um pelo ou uma lambida. 

Não se apresse em dizer que está bem. Se a minha criança puder falar com a sua ,dirá que foi preciso registrar algumas palavras no esforço de compreender. Saiu-me, na época, um necrológio enxuto, quase jornalístico. E, como as palavras falharam ao drama, foi preciso, ainda, fazer um desenho, com cores de lápis, cores que eu não tinha pra dar. Duas cruzes, dois coelhos com asas num jardim vastíssimo sob um sol sem rosto. A partir dali, o sol não sorria mais em minhas composições. A seu custo, eu entendia. A natureza é neutra. O sol não sorri nem chora. A noite não é necessariamente uma desproteção, posto que pode igualmente abrigar e esconder. E as coisas grandes, as coisas dolorosas acontecem também de manhã, à luz do dia.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Sem Açúcar

Sábado, Porto Alegre. Almoço em restaurante de shopping. Uma e meia da tarde. Primeiro andar lotado. A alternativa era encarar o lance de escadas, que prometia vista para o Guaíba. 

Por toda parte, famílias, alguns casais. Ninguém almoçando sozinho. Como, aliás, deveria ser. Era um restaurante de estilo americano, desses que o garçom se apresenta pelo nome. Que será responsável por cuidar de nós. Gosto que cuidem de mim e me recosto, mais segura e relaxada, no espaldar da cadeira.

Ali, nada faltava. Uma economia de sobras. A bebida se renovava no copo antes de se estabelecer a sede. Nem precisava pedir. Tudo orquestrado para satisfações, de modo a dispensar os clientes do raciocínio da necessidade.

Na nossa mesa, éramos os filhos a dar conselho aos pais. O mato cresceu sobre seus atalhos. Eu dizia algo sobre as estruturas deverem servir ao sentido e não o sentido às estruturas. Em torno de nós, os assuntos eram diversos. Coisas do dia. Impressões sobre a moda. Referências desanimadas ao cinza do tempo. As vozes eram o enxame de sempre, alternando risadas, “fala, querido!”s ao celular, gírias locais.

Uma voz de mulher soou alto. Vai ver arregimentava um coro de parabéns para o aniversariante do dia. Mas bem que parecia um grito. E sem o concurso alegre das palmas festivas.

Seguiu-se um novo quase grito. E depois, inequívoco, um grito de socorro. Os cascos das cadeiras repisaram assustadiços o chão. Uma algazarra de talheres abandonados às pressas sobre a louça e um gemido entrecortado de criança.

─ Pelo amor de Deus! Ele está passando mal!

O homem caiu sobre a mesa, levando o tampo de arrasto, numa incongruência de cacos e cubos de gelo. Os que estávamos presentes permanecemos petrificados em nossas marcas, em desconfortável figuração.

─ Alguém chame um médico! Tem algum médico aqui? ─ desesperava-se a mulher.

A súplica se espalhava em rápido boca a boca. Uma seita inaugurada à falta de Deus. Até que, após repetir a invocação três ou quatro vezes, uma senhora se deu conta de que era médica ela mesma. Só agora o chamado percorrera os longos corredores do sentido, esse hospital vazio. A postura tentando inspirar a confiança de um jaleco, checava o pulso, a carótida, perguntava à que parecia ser a esposa como era o nome dele. Como é o nome dele? Como é o nome dele? Embora soubesse o nome de cor, a mulher parecia tentar decifrá-lo, aterrorizada, da inscrição de uma lápide. O homem não respirava.

Alguém se lembrou de levar a menina esperneante para a varanda, para poupá-la da cena. O que a mergulhou num angustiante cinema mudo. Via o pai inerte através da vidraça. Via a mãe agarrar pelo braço os que, a esta altura, tinham se acercado:

─ Meu marido está morto? Meu marido morreu?

Da varanda a menina lia os lábios da mãe sem detectar o sinal de interrogação e berrava bestializada contra o absurdo.

Ofereceram à menina água com açúcar. Uma mão desconhecida lhe afagava os cabelos. A menina cuspiu a mentira açucarada: “Está tudo bem”. Não era suficientemente pequena para acreditar. O pai não se movia. Uma fotografia feia, de olhos revirados. O branco dos olhos contrastando contra o rosto arroxeado.

Se não chorávamos todos de impotência e susto e horror era pela obrigação moral de fingir algum controle diante da menininha e sua dor descontrolada.

─ Ele ainda tem pulso!

Como se a afirmação afrouxasse o laço da morte, o próprio homem se contorceu de repente, puxando o ar num engasgo. Parecia tentar sentar-se a qualquer custo, arrancando o tronco do chão com violência. Aos poucos, voltava a si. A médica e uns bombeiros que por ali chegaram tentavam subjugá-lo, pediam-lhe calma. Que tudo já estava bem. O homem tinha o olhar transtornado dos que se olharam nos olhos da morte e viram o próprio reflexo sumir nas cavidades ocas. Levaram-no dali em cadeira de rodas. Sua mulher só então chorava francamente.

As pessoas, cabisbaixas, voltavam às suas mesas. Inseguras. Humilhadas. O vento gelado varava o salão e tremíamos de um outro frio, olhando atônitos os restos do almoço. Todos tínhamos ao prato o rato morto de Clarice Lispector. Sua verdade indigesta. O asco da precariedade estava servido.

A carne que ali se comesse seria um ato de canibalismo. Tudo era cru e extremamente perecível. Como nós. Que nos julgávamos seguros, cotidianos.

A realidade debochava de nós. Ouvíamos, sem ousar nos virar, sua risada de hiena em nosso encalço.

O garçom nos trouxe a conta, embrulhada num sorriso empalhado. Pagamos, mudos de medo. Porque, mesmo assim, o Cobrador virá bater à nossa porta. A qualquer momento.

E fomos depressa engolir o choro, um pingado e dois espressos num outro quiosque barulhento da praça de alimentação.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

A Cegueira do Olho Mágico


Molho de chave encontrado a esmo, viúvo de portas, empunha inútil o seu segredo. Nem mesmo a concha da fechadura a lhe dar ouvidos. Ao longe, uma campainha estridente carpindo sua perda. O silêncio indefinidamente encerrado dentro.

De vez em quando, a mão inconformada fareja os trincos, a matilha de nós dos dedos a ladrar nervosamente à porta.

A ausência, acuada, estilhaça as vidraças e foge pelos telhados. Amplia seus domínios. Deserta a prisão da casa. Escancara a cidade deserta.

domingo, 15 de agosto de 2010

Vida em Breve

Férias são uma compensação insultante: é o direito de usufruir de 30 dias corridos após a correria de 335 dias trabalhados. Quem arrancou assim as folhas do meu calendário?


Lembrei-me do amigo que escreveu de longe, dando notícias de que se sentia vivo. Com o susto da exclamação. O que me deixou naturalmente interrogativa. Digno de nota que a gente, estando vivo, só se sinta vivo de vez em quando.


Na pausa é que o filme se inventa. No segredo da película, a vida se dá em tempo real. Não mais a ficção em fast-forward dos dias, pulando as cenas, pulando os anos. Roubando a voz aos diálogos. Subtraindo as legendas.


Quero emoções em câmera lenta. Sobretudo os prazeres. Quero meu rosto ocupando em close a atenção de quem amo. Quero a lentidão dos créditos. A assinatura do roteiro. Diminuir o tempo dos comerciais entre existir e o sentido.


Que a ação faça cada instante valer a pena, documentando o sentir-me viva em longa metragem. Para espanto da sala escura em que me projeto. Por 335 dias.


Em breve. Em breve. A promessa se adiando em cartaz.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

D'Ajuda


Exposta ao raio de sol, recuperava, pouco a pouco, os níveis do plexo. A praia inteira encoberta de nuvens. Só eu ungida de luz e manhã. Meus olhos, duas contas rebrilhando entre grãos menores, naturais entre sedimentos.

O mar se deslocava sob meu nariz. Inalei seu movimento o mais fundo que pude e, depois, vazante, soltei o ar com ruído pela esquadria dos dentes. As velas dos cabelos armaram-se à minha respiração, prontificando-se.

Minha cabeça derivava lentamente, de um lado a outro, buscando a margem de meus ombros, que se alongaram em acolhimento e socorro.

Entrelacei as mãos invertidas, palma com palma, fazendo contato. E as ergui acima da cabeça antenas. Meus pés abriram sulcos macios na areia. Condutores deitando a sobrecarga à terra. Não que eu ambicionasse o estado eletricamente neutro. Apenas um vôo mais organizado de partículas. Voltar à órbita, ao eixo. Centrar-me. Descentralizar o controle no caos. Re-alinhar as fibras dos músculos, espreguiçando.

O vento me soprava aos ouvidos:
Deixa...? Deixa...?

Afastei as pernas, aquiescendo ao raro desfrute de ter o corpo à disposição às três horas da tarde. E não era sonho. Eram as férias.

domingo, 25 de julho de 2010

Epitáfio Prolixo Sobre Desamar

Eu o amava muito. A ponto de desejar seu corpo, que, do contrário, nem me atrairia. Amava sua língua estrangeira. A consubstanciação da metáfora da comunicação como um eterno esforço de traduzir-se. A possibilidade do exílio.

Não sei bem quando as coisas começaram a terminar. O término é um processo que se conclui com uma sentença meramente declaratória: acabou. Dizê-lo é que é constituir o rompimento. Restabelecer a verdade da ausência.

Eu estava no boteco de sempre, tomando café da manhã e alguém pediu esfiha. Lembrei, sorrindo, que ele sempre trocava o nome do salgado com Efigênia e pedia ao balcão, inocentado pelo sotaque, um nome de mulher para o desjejum. Os olhos galhofeiros do balconista, faziam-no consultar meu semblante para certificar-se de que dissera algo errado, traído de segundas intenções pela língua que não era a sua.

Naquela hora, a recordação doeu-me baixinho, como uma lembrança já antiga. Não me ateou nenhuma emoção presente. Não senti propriamente saudade. Revirei os bolsos do sentimento, assaltada. Não estava lá a necessidade do outro. Ele já tinha se convertido em memória. E não doía.

Mas doía perceber que não doía.

Voltei pra casa sem dar pelo caminho, modulando a palavra pelos quarteirões: acabou... acabou?

Acabou.

À medida que me dava conta da realidade irrevogável da palavra, crescia em mim a gravidade de ter que dar ao outro, por telefone, a notícia da morte de ente nosso, tão querido e próximo ─ o amor.

Antecipava-o chorando sobre o corpo inerte de seis anos. Por que? Por que ele? Por que nós?

Toda morte é inesperada. Ainda que apenas culmine um estado terminal. Põe-nos a discutir porquês e distribuir responsabilidades.

Completada a ligação, o desligamento. Esprememos o tumor do silêncio, recompondo pistas, invocando mágoas. Acusando. Defendendo-nos. Confessando. Desta morte éramos o morto e o carro em alta velocidade que ignorou todas as placas de advertência. Espremíamos mais. Por que nos ensinaram que depois da extirpação viria a sanidade.

A conversa, eu me lembro, não foi longa. Longos foram os dias que se seguiram, acostumando os dedos a não discar DDIs, a não escrever um e-mail toda vez que virava a voragem , a cancelar aos clicks a passagem do próximo reencontro, que já estava comprada. Cancelados o natal e os presentes, desobrigávamo-nos de novas memórias.

As pessoas, quando participadas da notícia, reagiam com naturalidade, validando:

─ Foi a distância.

Nem me dava ao trabalho de explicar que é sempre a distância. Não tinha a ver com a quilometragem entre os continentes nem com o mar que lhes vai pelo meio. Somos incompetentes para construir pontes de muito menor escala.

E então me dei conta de quando tudo efetivamente começou a terminar: quando começamos a viver juntos. Paradoxalmente, nos três anos em que morávamos em países diferentes, éramos o quintal da alma um do outro. Buscávamo-nos com avidez de esconderijo. Interessávamo-nos verdadeiramente por explorar cada palmo daquele espaço que o outro era em nossa vida. Interessávamo-nos por cada elemento novo, pela floração de nuances. Corríamos ao encalço de todas os balões que nos caíssem por cima dos muros vizinhos.

Mas, quando fui morar na Alemanha, paramos de nos buscar. A obviedade da presença do outro fez nossas almas se desencontrarem, por deixar de procurar a brecha, o momento, a oportunidade da troca. A disponibilidade nos empobreceu um do outro.

No fim, o fim já tinha sido. Consumado o luto pela ausência da luta no decurso da própria acomodação.

A morte do amor é sempre violenta. Sobretudo se expira no sossego paralítico do lar, no descaso dos lençóis. Não é o amor que dói quando acaba. É o frio desconcertante da nossa própria indiferença sobre as feridas que nos eram caras. As que nos enchiam de delicadeza para romper com a mediocridade estabelecida. Por tempo demais.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Mitologia Urbana: O Flerte

Definitivamente, "a bad hair day" concluiu Medusa com os cabelos, serpentinhas filhotes teimando em não lhe assentarem à cabeça. Resignou-se ao balé espasmódico e despenteado dos fios e saiu à rua, olhos fitos na calçada. Da imagem cinética dos passantes destoava um ponto fixo, na curva panorâmica de sua visão. Detectou o homem. Petrificado.

Mas como, se eu nem cheguei a lhe deitar os olhos?

Incomodada, encardiu as retinas no intervalo das pedras portuguesas, evitando ver. E pensou que, se piscasse de forma lenta o suficiente, apagando a figura do homem, quem sabe ela mesma não desapareceria? Tinha, sempre que convinha, uma crença infantil de que a visão deveria reger-se pela elegância dos pactos estritamente bilaterais: de só sermos vistos por aqueles que igualmente nos interessa ver.

Acostumada a fazer tropeçar os homens com seu olhar perdigueiro, desta vez, a coisa acontecia em uma nova configuração. O homem é que a encarava de longe.

Os olhos, lentes que são, esquentam a superfície do que olham quando se demoram muito, convergindo raios. Objeto deles, a mulher ruborizava.

Aquele homem não tomava, como era praxe, a rota de fuga de seus quadris. Seu olhar era exato, na direção inegociável dos olhos. Tão imóvel era o olhar do outro sobre ela que parecia imprimir-lhe uma invisível frenagem. Desacelarava-lhe a marcha. Até que, por fim, estancou.

Em se cruzando os olhares, o resultado é o que todos conhecemos: dois seres marmorizados, medindo-se sem pressa, em plena via. Os outros contornando-os aos esbarrões.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

In Vitro

Como se foco exigisse cegueira, interrompi o giro no meio para olhar fixamente para um único lugar-horizonte, determinada a gerar.


Desenganada do verbo que me dá timbre à solidão, ambicionava a carne, o filho.


Eu, que nunca gostei de vestir esperanças, pela textura da ânsia ─ que é seu avesso. E como pinica! Pus-me a consultar as entranhas com a atenção com que, quando pequena, observava o algodão úmido para tentar capturar o feijão em seu movimento de coisa se formando no experimento escolar.


Nunca aprendi a lição: a vida sempre acontece quando estamos distraídos. Não gosta de ser flagrada em sua toalete de rosa desabrochada. Nunca desabrochando. Desconfio de que não há gerúndios na natureza e, sim, sucessivos presentes. Agora, ainda não é. Agora, já está. Com a destreza da capa do mágico, talvez só se nos revele o que lá sempre esteve, oculto em mistério e bastidor de ser.


Em mim não vingaram os feijões. Chorei coágulos grossos de sangue pelas pernas. Sobrou-me o pires de restos ─ algodões molhados, dois grãos herméticos, sem brechas pra vida. Toda a pobreza em mim é este pires que suplica o milagre do broto, esta louça rasa com pretensão a jarro com que sonho raízes.


Recolhi-me às prateleiras, tentando disfarçar a desordem sob a pilha perfeita de dias de igual diâmetro. Coloquei-me no fundo da pilha, adiando. Cansada dos experimentos. Das experiências também.


...Desde quando me quebrei pela última vez, esqueci a sabedoria da pele: trago o vidro trincado, sem registro de regenerar. Sempre que entro em contato, desentendo organicamente: os dedos contraem-se de dor contra as bordas ríspidas do não.