terça-feira, 10 de julho de 2012

(D)o Tempo - Ainda

Mudava, então, a conjugação dos verbos. Do tempo da possibilidade para o das coisas acontecidas. Havia muito de belo. E uma mesma medida de medo.

Só que o medo já não impedia a memória, já não paralisava a ação. Ao invés de intervalos, recuos, que eram ação também.

Levaram muito tempo até chegar ao presente, aonde, mutuamente, se ultrapassavam. Ela, que seguia manca de certezas (embora capaz de clareza e conclusão). Ele, saudoso delas (de certezas. De clareza. E de conclusão).

O beijo punha-os simultâneos. Coabitavam a boca. E, no entanto, estranhavam as falas. Cada um estrangeiro do outro. Eram tão parecidos quanto um ibo e um escocês. Isto é, fundamentalmente humanos. Desentendiam-se. Aprendiam-se. Aculturavam-se um do outro. A (des)semelhança é um caminho de lentas assimilações. Mesmo entre almas uma da outra tão gêmeas.

Sua linguagem era a das correspondências. O silêncio deles, o das reverberações. Replicavam-se infinitamente e, por isso, duravam. Duravam. Duravam. Avam. Vão.

terça-feira, 26 de junho de 2012

Indócil. O Torvelinho

Esvaziei-me de mim. Ou de algo que, por tão amado, constituía-me. A memória alucinada projeta o seu ter-sido sobre o eterno hoje dos dias e afoga o presente em nostalgia açucarada e espessa.

A travessia da separação é um nado em cãibras dentro do mel de quanto se amou para a outra margem, aonde o outro já não está. O mel não se deixa fender tão docilmente quanto a água. Tudo nele é lento. Também na dor. E coagula em favos, que são do mel a violência, os seus rochedos.

Não é por serem doces que são menos capazes de estraçalhar ou ferir. Quando a torrente me joga de encontro aos favos, o coração arrebenta. É mais amargo sofrer de dentro da doçura.

Os diabéticos cicatrizam mal e sofrem a violência desproporcional das amputações a partir do que, a princípio, se apresentava como inofensivo arranhão. Donde concluo que nenhum arranhão na represa do pacto amoroso é inofensivo. É que, de ordinário, subestimamos a força dos arrastos.









sexta-feira, 20 de abril de 2012

Bio

Para Ana Karina Bucciarelli
e  para mim, que preciso nascer de novo.


Estou juntando forças. Eu preciso chegar ao caroço da coisa e o caroço requer dureza. Eu preciso aprender a dureza do caroço. É o que guarda o D.N.A. da construção inteira e, portanto, pode reinventá-la a cada vez, da escuridão do chão.


Depois eu nasço. Nascer é' sempre tenro e, por isso, é tão desprotegido o gesto de nascer. Não é à toa que é quase uma expulsão. De bom grado ninguém sai do lugar protegido para o desamparo do seco. Mas é o ciclo e é tudo da Lei. Eu tive a árvore. E voltei ao caroço. Agora é a hora da dureza, do desaconchego (embora o caroço pareça aconchegar a si mesmo). 


Depois eu galho. Depois eu seiva. Depois eu altura, flores amarelas, estrutura frondosa de novo.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Pertencimento

(Texto escrito em 2005)
Sobre as velhas pegadas, novos caminhos.  
O viajante, ao viajar, sente-se em casa.
O movimento é sua cadeira de balanço 
e a confluência entre a meta e a conquista,
o tapete sobre o qual descansa seus sapatos.

Voltar é revisitar a origem do caminho, 
o ponto de partida. Mais do que isso: 
convalidar a escolha de partir. Eis que, regressando, 
já não há nada atrás de si sobre o que voltar-se.
A vida está à frente e no impulso de seus pés.

Homem e sombra coincidem no marco zero da rosa dos rumos.
O passo seguinte assume o risco de uma direção, 
dá-lhe um sentido: o homem ao passo e o passo ao homem.
E porque tudo lhe pareça tão claro 
sobrevêm-lhe imagens de coisas encaixando-se:
sandálias aos pés, chaves a fechaduras (metáfora de preencher e libertar),
peças de um quebra-cabeça atraindo-se como ímãs, 
espelho quebrando-se ao contrário, refazendo-se,
recompondo a integridade do que fragmentado estava.

Aí está: o ser inteiro. Em seu tamanho real, 
é dizer, maior do que muitas coisas, 
menor do que outras tantas, mas, sobretudo, à altura 
de ser a si mesmo e isso ser sua bravura e sua maior fragilidade. 
Pertencer pressupõe a qualidade dos fortes. Precisar é que não. 
Precisar é querer para si, enquanto pertencer 
é querer ser de outrem e aplicar-se, enquanto movimento, 
a uma outra vida. A mão estendida, ao precisar, suplica.
Ao pertencer, desprende-se, oferece de si a sua palma:
entrega-se. O sentimento de pertencer consuma-se 
com esse transbordamento mesmo, e independe (enquanto realidade) 
da recepção do outro.  Se sinto-me tua e o digo 
é por fidelidade à verdade minha, por retidão 
de restituir a ti o que te pertence e de mim transborda. 
É todo teu. Eu, toda minha. Já não meço forças com a solidão, 
nem pretendo sobre o amor prevalecer. Minha força se distende. 
Assim, o que à força imóvel estava, projeta-se, 
ganha impulso, descomprime-se. Fica-me o coração, assim, 
em pulsante repouso - vivo e em paz.
Ou antes, sereno e em paz porque pulsante e vivo.

sábado, 28 de janeiro de 2012

A Trilha Sonora

http://www.youtube.com/watch?v=PCkT4K-hppE
(Pequeno manual de instruções: colocar a música do link ao fundo em uma segunda aba do browser e deixar tocar por aproximadamente 40 segundos, para adentrar a ambiência do texto. Só então retirar a pausa da leitura para acessar integralmente a experiência)


Preparada a cavalgadura entre as corcovas do camelo: almofadas persas, sedas multicores, rebrilhos. Acessórios que eram palavras vindas de longe e agora escoltavam de volta ao longe, deslocavam pelo encanto. 

Pernas compridas, de observatório, tem o animal. Entre as preferidas de Dalì. Erguendo-se, desaprumado, um elevador de patas alçando a vista.  Todo gerúndio, musculatura em movimento. 

Ali de cima ser era mais amplo. O mundo que balance lá embaixo! O olhar dança. A cada passo do improvável bicho a estrada ondula. Ao invés de curvas, parábolas. O camelo engendra pequenos, imaginários precipícios. 

Ao moverem-se os flancos, o caminho soluça, o horizonte ziguezagueia. Os olhos são odaliscas sem véus. O olhar, redobradamente, dança.