quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

A Causa

Na mocidade, havia sido engajado e sonhava lutar pelos excluídos.

Nada sabia do sono dos justos, porque a justiça ainda não se cumprira. Via os pratos da balança sempre em acintoso desnível e amarrotava a bandeira da ideologia sob a agitação da vigília. E dizer que os fizeram acreditar que não valiam nada, que não mereciam ser mais, viver em condições melhores!

Se dormisse, pensava, afrouxaria os dedos e largaria a mão invisível do outro. O outro, o rosto anônimo do irmão, o coletivo.

Trazia na testa um vinco fundo. O talho do siso. O sinal dos que nascem comprometidos. Desde que tivera consciência de si, e parecia já tanto tempo, concebera que a vida ou estava a serviço de um sentido ou serviria mesmo de muito pouco.

Estranhamente, o pensamento do coletivo trouxera-lhe isolamento. Havia sido um moço só entre certezas e, ousava dizer, convicções. A palavra ainda acelerava-lhe o pulso.

Não saberia precisar quando trocou o raciocínio da coletividade pelo automatismo do “salve-se quem puder”. Esse automatismo, paradoxalmente, o reconduzira ao rebanho. Agora, pertencia à massa desuniforme da classe média e usava gravatas italianas para esconder o nó da garganta.

Caminhando a passo executivo pelo centro, em plena conference-call, tomaram-lhe o celular. Com o susto, gritou um impropério, puxando o coro de pega-ladrão.

O policial estava próximo e reagiu imediatamente. O menino caiu ensangüentado, o celular estatelado a seu lado, com as vísceras de micro-circuitos à mostra.

Diligente, um passante reconstituiu o celular, devolvendo as peças a seus devidos lugares. Testou o botão de acender, no que a tela se iluminou. O transeunte o estendeu ao dono, dizendo em voz reconfortante “Eu acho que ele vai ficar bem”.

O menino agonizava ainda, mas ninguém se preocupava em socorrê-lo. O policial respondia a cumprimentos, estreando como herói do dia.

Não entenderam quando se ajoelhou ao lado do menino, gritando que não estava certo, que não era verdade, que não era possível, que não acreditasse, que não. Mas o menino morreu obediente, como esperavam dele, cumprindo / restabelecendo a Ordem. Ao refugo, deita-se fora. 
 
Seu vinco na testa era agora uma escara dolorida de vergonha e consternação. Ali, na cotação do asfalto, a vida valia menos que um celular.

6 comentários:

  1. Roberta? - Chamei.

    Assim que terminei de ler o seu relato, dei com a palma da mão na testa ao ouvir o sorriso de uma criança entrar pela minha janela. Desconfio que seja essa. Tem alguma ideia de quantos heróis são mortos por dia? Cresci em meio à uma família de tios esquizofrênicos que partiam lagartos em quatro partes e me perguntavam se eu estava servida. Dois deles morreram à míngua em nome de um Deus que os mandou para morte ainda vivos, e em situações como a que relata pergunto-me em oração. Deus - você sabe mesmo que eu existo?


    Seu texto caiu como uma adaga, abrindo velhas chagas.

    Te toco.
    Me tocas.

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  2. Você e seus olhos que podem ver através da vida que acontece entre um golpe e um suspiro.

    Agora de novo com internet, volto a pisar o chão com um pé na realidade e um pé no sonho (esse aqui de escrever).

    Beijos, Kk

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  3. Esse texto mostra uma realidade, como amadurecemos e nossas crenças antigas já nao sao mais as mesmas, algumas nem dá para serem as mesmas, as coisas mudam, e a gente percebe. E se decepciona muito.

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  4. Que bela descrição que nos mostra como os valores podem mudar e influenciar-nos... adorei seu espaço.
    Deixo-te um abraço

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  5. Amiga, já tinha lido seu texto, mas sem tempo não comentei, agora preciso ler você para aumentar meu tempo de contato com uma realidade que vem sumindo. Como? Alienação que cega quem pensa que ainda vale à pena criar, que o mundo não é feito só de matéria.
    Saudade... estou precisando tanto te encontrar face to face.

    Beijos,
    Elis

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  6. Menino
    Ao sê-lo ar
    Selou
    O destino
    Ímpar
    Sem par
    Célula a se esvair em sangue
    Nesse mangue
    Em que todos seguem a charfundar...

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